Manifesto dos Deveres Humanos

A humanidade chegou a um limiar da sua história, o instante em que o espelho da Terra devolve o reflexo exato daquilo que nos tornámos. No espaço breve de uma vida, erguemos direitos e rasgámos florestas, multiplicámos vozes e sufocámos rios, escrevemos tratados e apagámos espécies.

A Terra, silenciosa e paciente, suportou o rumor do nosso progresso até que o ruído se tornou ferida. E agora, neste limiar, sentimos o chão estremecer sob o peso do que construímos e compreendemos, enfim, que direitos sem deveres são promessas vazias. Nenhuma liberdade humana é verdadeira se não se erguer sobre o respeito pela vida que a sustenta.

Durante séculos acreditámos ser senhores do mundo, conquistadores de uma matéria inerte moldada pela vontade. Mas a matéria nunca foi inerte, e a vontade que nos moveu trouxe também a cegueira que nos separou da casa comum. Os primeiros sinais desta rutura nasceram do excesso e do medo.

As armas, os germes e o aço, que nos distinguiram e deram domínio, ergueram igualmente o abismo. O historiador da Terra dirá um dia que a nossa civilização confundiu engenho com sabedoria e poder com pertença. Há muito que sabíamos que a força que subjuga acaba por subjugar-se a si própria.

Chegou ao fim a era em que a humanidade acreditou poder existir sem o mundo que a sustenta. Que termine o Antropoceno. Longa vida ao Simbioceno. A nova era pede outro verbo, o verbo cuidar. E cuidar exige responsabilidade.  
 
Esta responsabilidade, que Hans Jonas descreveu como imperativo, é agora o centro moral do nosso século. Já não se trata de um dever abstrato, mas da necessidade de garantir o direito de existir a tudo o que respira. Somos responsáveis não apenas pelo que fazemos, mas pelo que deixamos morrer.

A ética da Terra nasce quando o humano deixa de ser conquistador e se reconhece parte da comunidade biótica. A cada ser vivo, visível ou invisível, corresponde uma fração daquilo que somos. A inteligência que preside aos ecossistemas é mais antiga e mais ampla do que a nossa, e cada organismo, do líquen ao elefante, participa da construção da vida como um artesão silencioso.

A ciência revela que a biosfera é um sistema de comunicação constante, um tecido de sinais, trocas e equilíbrios, onde o humano é apenas um fio. E se somos apenas um fio, o nosso primeiro dever é não rasgar o tecido.

A história das civilizações ensina-nos que prosperámos quando aprendemos a cooperar com a natureza e que colapsámos quando a explorámos até ao esgotamento. A agricultura que nos alimentou também abriu as veias da terra. As cidades que construímos também afastaram os rios. O fogo do engenho trouxe a sombra do carbono.

A memória do solo é o testemunho do esquecimento humano. Se olharmos com honestidade, perceberemos que a crise climática é apenas o sintoma mais recente de uma crise espiritual antiga. A doença não é da Terra, é da nossa relação com ela.

Por isso, a regeneração de que precisamos não é apenas ecológica, é moral. Restaurar ecossistemas é restaurar vínculos. O restauro ecológico é o novo rosto da ética. E essa ética não se cumpre em silêncio técnico, mas em gesto político e poético.

Quando um lago é limpo, quando uma semente é devolvida ao solo certo, quando uma árvore renasce num espaço onde antes se ergueu o betão, cumpre-se mais do que uma tarefa ambiental, cumpre-se um dever humano.

O restauro ecológico é o nosso novo contrato social. O que a ciência chama ecologia, o espírito chama aliança. O restauro não é apenas correção do dano, é restituição da reciprocidade. Durante demasiado tempo confundimos progresso com extração, produtividade com valor, lucro com sentido.

Agora compreendemos que não há economia possível sobre um planeta doente. O novo paradigma é regenerativo, não extrativo. Os solos, que nos alimentam, pedem o mesmo respeito que pedimos à lei. A regeneração é a política mais justa que podemos praticar.

O tempo da reconciliação chegou. O homem deve reconciliar-se com a água, com o vento, com o húmus e com a sombra das árvores. E deve também reconciliar-se consigo próprio. Perder o contacto com a Terra é perder o centro da alma. As sociedades urbanas, saturadas de ruído e luz artificial, sofrem de uma fome invisível, a fome de natureza.

A psicologia começa a reconhecer aquilo que os povos antigos sempre souberam, que o bem-estar humano é inseparável do vínculo com o mundo vivo. Cada vez que uma criança toca num tronco ou se ajoelha sobre a erva, o equilíbrio retorna por instantes ao universo.

Mas cuidar não é apenas sentir. Cuidar é agir. Os deveres humanos que aqui se propõem não são metáforas, são compromissos. Devemos respeitar a integridade da Terra, restaurar o que foi destruído, prevenir o dano antes da culpa, partilhar com justiça os frutos e os encargos da criação.

Devemos reconhecer voz e dignidade jurídica aos rios, às florestas, às montanhas, para que possam defender-se no tribunal da humanidade. Devemos incluir as comunidades locais e os povos indígenas na governação dos bens comuns, porque neles habita a memória da harmonia.

Devemos educar para a reciprocidade, medindo o sucesso não em crescimento, mas em regeneração. Devemos orientar a economia de modo que a prosperidade se mantenha dentro dos limites planetários e que ninguém viva abaixo do limiar da dignidade.

A economia regenerativa é a face prática desta ética. O solo é o maior repositório de esperança. Na sua escuridão fermenta a promessa do futuro. Quando a agricultura se reconcilia com a ecologia, o campo deixa de ser espaço de produção e volta a ser espaço de comunhão.

Cada húmus regenerado é um ato de redenção. A ciência dos ecossistemas e a sabedoria das aldeias encontram-se no mesmo gesto, o de devolver à Terra mais do que dela se retira.

O direito, que durante séculos serviu o domínio, começa finalmente a aprender a servir a vida. Em várias geografias, a lei começa a reconhecer personalidade jurídica à natureza. O rio é sujeito, a montanha é pessoa, o mar é entidade com dignidade. São sementes de uma jurisprudência nova que se espalha pelo mundo como uma primavera moral. Cada vitória legal de um rio ou floresta é também uma vitória da consciência humana.

A Europa deu um passo histórico ao tornar obrigatório o restauro ecológico. Pela primeira vez, a regeneração deixou de ser virtude e passou a ser dever. É um sinal de maturidade civilizacional.

Mas a verdadeira revolução será quando cada país fizer do restauro não um cumprimento burocrático, mas um pacto sagrado. O restauro não pode ser um gesto de reparação técnica, deve ser uma declaração de amor à continuidade da vida.

O tempo que nos resta deve ser o tempo da reparação. Devemos plantar árvores com a mesma urgência com que erguemos monumentos. Devemos limpar rios com o mesmo zelo com que construímos estradas. Devemos cuidar dos solos com a mesma inteligência com que inventamos máquinas. A sabedoria não está em multiplicar, mas em sustentar. O verdadeiro progresso é o que aumenta a vida.

No silêncio das plantas habita o modelo da civilização futura. Elas crescem sem devastar, transformam sem esgotar, comunicam sem ruído. A inteligência vegetal é a metáfora e o guia daquilo que podemos ser. Um mundo que pense como uma floresta, que respire como um campo, que aprenda a dar sem esperar retorno. O segredo da sobrevivência está nas raízes, não nas torres.

A educação deve transformar-se. As escolas do futuro ensinarão ética e ecologia como um mesmo corpo. As crianças aprenderão a medir o pulso de um rio e a ler o tempo nas folhas. A literatura voltará a falar das árvores, a filosofia voltará a ouvir o vento, a ciência voltará a ser reverência. Só assim poderemos reconstruir a ligação entre o humano e o mundo vivo.

Os deveres humanos são, em última instância, um exercício de gratidão. Gratidão à Terra que nos sonhou e nos sustenta, gratidão à vida que não nos deve nada e ainda assim nos oferece tudo. Cuidar é o verbo mais político do nosso tempo. A Terra não nos pertence, nós é que pertencemos à Terra.

Este manifesto é um apelo, mas também uma promessa. Apelo à consciência de que não há justiça sem ecologia, nem liberdade sem responsabilidade. Promessa de que ainda podemos escolher o caminho do restauro, o caminho da regeneração, o caminho da paz com o planeta que nos deu o ser.

O tempo das promessas vazias terminou. Entrámos no tempo dos deveres. Que cada rio devolvido à sua corrente, cada floresta restaurada, cada espécie regressada seja o testemunho de que aprendemos finalmente a conjugar direito com responsabilidade, liberdade com cuidado, ciência com amor.

Que o futuro, quando chegar, nos encontre de mãos sujas de terra e de coração limpo de soberba. Que a Terra, quando nos sonhar de novo, possa sonhar-nos dignos dela e nos perdoe a demora.

Partilho uma proposta com 10 Deveres Humanos para com a Terra:

1º dever: respeitar a integridade e a autorregeneração da natureza, reconhecendo que cada ecossistema é organismo e memória, expressão de um equilíbrio que sustenta todas as formas de vida.

2º dever: restaurar o que foi degradado, devolver rios ao seu curso, solos à sua fertilidade, florestas à sua complexidade e mares à sua transparência, compreendendo que a reparação é forma de justiça.

3º dever: prevenir o dano antes que ele exista, praticando o princípio da precaução e a humildade do limite. Agir com consciência ecológica é evitar a culpa antes que o arrependimento se torne inútil.

4º dever: partilhar com justiça os frutos e os encargos da Terra. Nenhuma economia é legítima se gera abundância para uns e deserto para outros. A justiça ecológica é inseparável da justiça social.

5º dever: reconhecer representação jurídica à natureza. Os rios, as montanhas e as florestas devem ter voz nos tribunais da humanidade, com guardiões independentes capazes de agir em seu nome e proteger a sua dignidade.

6º dever: incluir as comunidades locais e os povos indígenas na governação dos bens comuns. Eles guardam a sabedoria da convivência e da reciprocidade que o mundo industrial esqueceu.

7º dever: educar para a ligação entre vida e limite. A educação do futuro deve ensinar o ar como bem comum, o solo como organismo vivo e as plantas como seres com linguagem. O conhecimento será inteiro quando ciência e poesia se reencontrarem.

8º dever: medir e relatar o estado da vida com a mesma seriedade com que se mede a economia. Devem existir indicadores de restauro, biodiversidade e harmonia, tornados públicos e vinculativos. A transparência é também forma de cuidado.

9º dever: orientar a economia para a regeneração. A agricultura deve imitar a floresta. A produção deve inspirar-se na cooperação das plantas, que transformam sem destruir. A inovação tecnológica deve servir a vida e não substituí-la.

10º dever: cooperar internacionalmente no restauro da biosfera. Nenhuma nação é ilha no planeta em aquecimento. A humanidade deve assumir, sob a égide das Nações Unidas, um Tratado dos Deveres Humanos para com a Terra, integrando ciência, jurisprudência e sabedoria tradicional, com metas, indicadores, financiamento e fiscalização.
 

 

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