O corpo da Terra, a terra do Corpo
Há um continente inteiro de seres vivos a pulsar dentro de nós. Uma vasta geografia de pequenas presenças que desenham mapas invisíveis no intestino, na pele, nas mucosas. Chamamos a este território microbioma.
Tal como cá fora, onde a humanidade muda rios de curso e derruba florestas, também por dentro vamos talhando o relevo com pressa e descuido. A globalização levou aos pratos a mesma paleta de sabores repetidos, embalou o trigo, o milho, o açúcar, e empurrou para longe os grãos antigos, as raízes fibrosas, os fermentos pacientes.
O resultado é um mundo interior mais pobre, mais uniforme, associado a estilos de vida urbanizados e dietas pobres em fibra, com margens lisas onde antes havia enseadas de diversidade.
A perda de biodiversidade no planeta começa assim. Um corte aqui, uma estrada além, um campo inteiro que se rende a uma única espécie. O canto das aves apaga-se pouco a pouco, os rios perdem os peixes e as larvas, os solos cansam, e tudo passa a depender de adubos que prometem abundância, mas cobram o preço da vitalidade.
Dentro de nós ecoa a mesma transformação. As espécies microbianas que coevoluíram com fibras e raízes diversas cedem espaço às que prosperam em açúcares fáceis e alimentos sem tempo, reflexo das dietas apressadas que inventámos.
Fármacos necessários, mas usados sem cuidado, alisam as colónias como pesticidas em lavoura extensa. A exposição repetida a estas substâncias reduz a diversidade microbiana e favorece a resistência, variando conforme a classe e o tempo de uso. A nossa paisagem íntima transforma-se numa monocultura resistente, mas frágil. Parece estável até que um vento novo a tome de surpresa.
Ambos os mundos têm saudades do mesmo princípio simples. Diversidade é memória. É redundância sábia. É o conjunto de vozes que se respondem e protegem umas às outras quando chega a tempestade. Uma floresta com muitas espécies resiste melhor ao fogo e volta a verdejar. Uma diversidade funcional assegura resiliência, tanto nos ecossistemas naturais como no microbioma humano.
Um microbioma variado amortece inflamações, ensina o sistema imunitário a reconhecer o que importa e a deixar passar o que deve viver. O planeta precisa de corredores ecológicos para restaurar o que foi separado. O nosso corpo pede corredores de fibra para restaurar fermentadores esquecidos.
A terra necessita de repouso, rotação de culturas, humidade guardada. Nós precisamos de tempo à mesa, de alimentos vivos, de fermentações lentas que devolvem língua e abrigo aos micróbios amigos.
Restauro ecológico é uma arte de paciência. Não se planta uma floresta em linha reta. Escutam-se os solos, leem-se as águas, mapeiam-se as sombras, e só então se escolhem as espécies que vão juntas. O restauro do microbioma reflete a mesma lógica de equilíbrio e tempo que sustenta o renascer dos ecossistemas.
Começa por retirar o ruído onde for possível, reduzir a agressão desnecessária, abrir espaço para que o corpo reconheça. Depois semeiam-se hábitos que alimentam as minúsculas vidas que habitam em nós. Leguminosas, frutos, verduras que ainda cheiram à terra. Cereais integrais que pedem mastigação e tempo. Águas que lembram rios, não refrigerantes.
E de vez em quando, como quem reintroduz um lince numa serra, trazem-se culturas vivas, como iogurte, kefir, chucrute, kimchi, kombuchas, que podem aumentar a diversidade e modular a inflamação, e pães de massa-mãe, que devolvem textura ao chão intestinal.
Também é preciso justiça. Cá fora, a conservação falha quando a comunidade humana é esquecida. Não há parque natural que dure se os vizinhos passam fome. Dentro de nós a diversidade empobrece quando o equilíbrio se perde.
Não há microbioma que floresça se a vida quotidiana nos empurra para a conveniência permanente, para o consumo frequente de alimentos ultraprocessados, associados a inflamação e menor diversidade microbiana, para o sono curto, para o sedentarismo.
A saúde do ecossistema humano pede cidades que deem passos, mercados que ofereçam alimento real, tempos que devolvam horas à cozinha e ao convívio. Pede políticas que protejam tanto a abelha no pomar como a bactéria que conversa com o nosso intestino.
Depois de tanta pressa, é o retorno que nos salva. O planeta não nos exige penitências grandiosas todos os dias. Pede antes escolhas que se repitam e criem trilhos. Plantar uma árvore certa no lugar certo. Deixar uma margem de campo para flores livres. Beber água como quem regressa à nascente.
Encher o prato de cores que pertencem à terra e não à indústria do disfarce. Tudo o que reconecta a vida lá fora sustenta a vida cá dentro. Tudo o que restaura a diversidade do planeta restaura o sentido do nosso próprio corpo.
A globalização ensinou-nos a viajar velozmente. Talvez agora nos caiba aprender a regressar com delicadeza. A refazer a casa comum que liga o corpo ao planeta. A cuidar das florestas e do intestino como partes do mesmo fôlego.
Com diversidade, com tempo, com cuidado. Que o corpo e a terra respirem juntos. É dessa harmonia que depende o nosso futuro.
Tal como cá fora, onde a humanidade muda rios de curso e derruba florestas, também por dentro vamos talhando o relevo com pressa e descuido. A globalização levou aos pratos a mesma paleta de sabores repetidos, embalou o trigo, o milho, o açúcar, e empurrou para longe os grãos antigos, as raízes fibrosas, os fermentos pacientes.
O resultado é um mundo interior mais pobre, mais uniforme, associado a estilos de vida urbanizados e dietas pobres em fibra, com margens lisas onde antes havia enseadas de diversidade.
A perda de biodiversidade no planeta começa assim. Um corte aqui, uma estrada além, um campo inteiro que se rende a uma única espécie. O canto das aves apaga-se pouco a pouco, os rios perdem os peixes e as larvas, os solos cansam, e tudo passa a depender de adubos que prometem abundância, mas cobram o preço da vitalidade.
Dentro de nós ecoa a mesma transformação. As espécies microbianas que coevoluíram com fibras e raízes diversas cedem espaço às que prosperam em açúcares fáceis e alimentos sem tempo, reflexo das dietas apressadas que inventámos.
Fármacos necessários, mas usados sem cuidado, alisam as colónias como pesticidas em lavoura extensa. A exposição repetida a estas substâncias reduz a diversidade microbiana e favorece a resistência, variando conforme a classe e o tempo de uso. A nossa paisagem íntima transforma-se numa monocultura resistente, mas frágil. Parece estável até que um vento novo a tome de surpresa.
Ambos os mundos têm saudades do mesmo princípio simples. Diversidade é memória. É redundância sábia. É o conjunto de vozes que se respondem e protegem umas às outras quando chega a tempestade. Uma floresta com muitas espécies resiste melhor ao fogo e volta a verdejar. Uma diversidade funcional assegura resiliência, tanto nos ecossistemas naturais como no microbioma humano.
Um microbioma variado amortece inflamações, ensina o sistema imunitário a reconhecer o que importa e a deixar passar o que deve viver. O planeta precisa de corredores ecológicos para restaurar o que foi separado. O nosso corpo pede corredores de fibra para restaurar fermentadores esquecidos.
A terra necessita de repouso, rotação de culturas, humidade guardada. Nós precisamos de tempo à mesa, de alimentos vivos, de fermentações lentas que devolvem língua e abrigo aos micróbios amigos.
Restauro ecológico é uma arte de paciência. Não se planta uma floresta em linha reta. Escutam-se os solos, leem-se as águas, mapeiam-se as sombras, e só então se escolhem as espécies que vão juntas. O restauro do microbioma reflete a mesma lógica de equilíbrio e tempo que sustenta o renascer dos ecossistemas.
Começa por retirar o ruído onde for possível, reduzir a agressão desnecessária, abrir espaço para que o corpo reconheça. Depois semeiam-se hábitos que alimentam as minúsculas vidas que habitam em nós. Leguminosas, frutos, verduras que ainda cheiram à terra. Cereais integrais que pedem mastigação e tempo. Águas que lembram rios, não refrigerantes.
E de vez em quando, como quem reintroduz um lince numa serra, trazem-se culturas vivas, como iogurte, kefir, chucrute, kimchi, kombuchas, que podem aumentar a diversidade e modular a inflamação, e pães de massa-mãe, que devolvem textura ao chão intestinal.
Também é preciso justiça. Cá fora, a conservação falha quando a comunidade humana é esquecida. Não há parque natural que dure se os vizinhos passam fome. Dentro de nós a diversidade empobrece quando o equilíbrio se perde.
Não há microbioma que floresça se a vida quotidiana nos empurra para a conveniência permanente, para o consumo frequente de alimentos ultraprocessados, associados a inflamação e menor diversidade microbiana, para o sono curto, para o sedentarismo.
A saúde do ecossistema humano pede cidades que deem passos, mercados que ofereçam alimento real, tempos que devolvam horas à cozinha e ao convívio. Pede políticas que protejam tanto a abelha no pomar como a bactéria que conversa com o nosso intestino.
Depois de tanta pressa, é o retorno que nos salva. O planeta não nos exige penitências grandiosas todos os dias. Pede antes escolhas que se repitam e criem trilhos. Plantar uma árvore certa no lugar certo. Deixar uma margem de campo para flores livres. Beber água como quem regressa à nascente.
Encher o prato de cores que pertencem à terra e não à indústria do disfarce. Tudo o que reconecta a vida lá fora sustenta a vida cá dentro. Tudo o que restaura a diversidade do planeta restaura o sentido do nosso próprio corpo.
A globalização ensinou-nos a viajar velozmente. Talvez agora nos caiba aprender a regressar com delicadeza. A refazer a casa comum que liga o corpo ao planeta. A cuidar das florestas e do intestino como partes do mesmo fôlego.
Com diversidade, com tempo, com cuidado. Que o corpo e a terra respirem juntos. É dessa harmonia que depende o nosso futuro.

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