O enigma do medronheiro
Víamos nesses documentários jovens elefantes, macacos, javalis e antílopes a cambalearem junto às marulas, numa coreografia que parecia nascida do próprio fruto caído e fermentado. Aquelas imagens, filtradas pela infância, tinham para mim a intensidade de um assombro primitivo, como se a natureza guardasse ali um enigma vindo de terras distantes.
Durante anos aceitei esse espetáculo sem desconfiança, sem imaginar que por detrás daquela dança havia um tema complexo, que ainda hoje convoca investigadores. A relação profunda entre animais, frutos fermentados e substâncias capazes de moldar o comportamento.
Não é apenas mito ou fantasia. É um território de dúvida fecunda, onde as perguntas continuam vivas e a ciência avança com cautela, reconhecendo que há fenómenos que ainda escapam à medição exata.
O que hoje se conhece é mais complexo e infinitamente mais interessante. Trabalhos recentes realizados em Botswana mostraram que os frutos da marula abrigam uma comunidade surpreendentemente rica de leveduras selvagens, capazes de transformar os açúcares do fruto em etanol em quantidades relevantes.
Estas investigações revelaram que a marula fermenta com rapidez e que, em teoria, a sua composição aromática e alcoólica pode influenciar o comportamento de várias espécies frugívoras.
Os próprios autores reconhecem que esta fermentação cria condições plausíveis para estados de intoxicação, ainda que insuficientes para afirmar que elefantes, macacos ou outros mamíferos africanos chegam realmente a embriagar-se na natureza. A narrativa permanece num território intermédio, onde a observação popular e a curiosidade científica avançam lado-a-lado, à espera de provas que desfaçam ou confirmem o enigma.
Ao mesmo tempo, a investigação mais recente sobre o papel ecológico do etanol nas paisagens naturais trouxe uma revelação discreta e profunda. O álcool não é uma extravagância humana, mas uma presença discreta e constante nos ecossistemas.
Frutos muito maduros ou caídos acumulam pequenas percentagens de álcool por fermentação espontânea, inúmeros animais frugívoros consomem-nos como parte da sua rotina alimentar.
Sabe-se hoje, por exemplo, que os chimpanzés podem ingerir diariamente quantidades equivalentes, em termos relativos, a um copo de cerveja humano, sem sinais de embriaguez, porque metabolizam o etanol com natural eficiência.
Há também registos de aves e pequenos mamíferos que, ao comerem frutos fermentados ou néctares alcoólicos, exibem comportamentos compatíveis com desorientação, estes, sim, descritos com maior detalhe. Assim, o consumo de substâncias psicoactivas naturais por animais deixou de ser mera anedota para se afirmar como parte reconhecida da ecologia evolutiva.
É neste amplo contexto que sempre coloquei o medronheiro. Em Portugal, foi a árvore que, no meu imaginário, mais se aproximou da marula africana. Nos meus anos de estudante na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, novembro tinha um ritual próprio.
Caminhávamos demoradamente pelo campus à procura dos medronhos mais maduros, quase rendidos ao toque, vermelhos, rugosos, carregados daquela doçura que só o frio sabe intensificar.
Havia anos de abundância e anos de quase absoluto vazio. Só mais tarde percebi que essa oscilação é bem conhecida pelos produtores, falam de anos de safra e de contrassafra, descritos pela ciência como variabilidade interanual marcada, condicionada por geadas, secas, ventos fortes durante a floração e pelo estado fisiológico das plantas.
Tal como aconteceu com a marula, também o medronheiro gerou o seu próprio mito, a ideia teimosa de que comer muitos frutos poderia provocar tonturas ou até uma pequena bebedeira. Hoje sabemos que os frutos maduros na árvore praticamente não contêm álcool e que não existe qualquer registo clínico ou experimental de embriaguez em adultos por consumo de medronhos frescos.
O único cenário plausível, embora nunca comprovado, seria o de uma criança pequena comer frutos caídos já em início de fermentação, mais vulnerável ao álcool por ter menor densidade corporal e metabolismo ainda imaturo, ecoando aqueles relatos de juventude em que tantos lembram uma leve atordoação, o rosto a aquecer, o riso a nascer sem esforço ou uma breve sensação de desequilíbrio depois de devorar medronhos em excesso.
Mas a embriaguez que realmente conhecemos é outra. É a da aguardente que o ser humano soube extrair destes frutos, destilada em alambiques de cobre nas serras de Monchique e do Caldeirão, guardada como património cultural e económico, protegida por indicação geográfica e sustentáculo de muitas famílias deste sul serrano.
O medronheiro, porém, é muito mais do que os seus frutos. É autóctone de Portugal continental e atravessa o país inteiro, firmando-se em solos pobres, subindo encostas íngremes, insinuando-se por ravinas profundas, ocupando clareiras de mato mediterrânico.
Adapta-se ao xisto, ao granito, ao calcário e até a solos mais delgados, exibindo uma versatilidade rara entre as espécies autóctones. Nos Açores surge sobretudo na Terceira, como espécie introduzida, e na Madeira apenas por mão humana.
A sua biologia tem uma cadência singular. As flores aparecem no outono, quando tantas plantas recolhem energias, e oferecem alimento vital aos polinizadores. Ao mesmo tempo, os frutos do ano anterior amadurecem devagar até janeiro, criando uma continuidade que poucos arbustos conseguem igualar.
As raízes prendem os taludes, amparam a erosão e favorecem a infiltração de água. Depois dos incêndios, rebenta com um vigor quase instintivo a partir da base, tornando-se peça essencial em muitos programas de restauro ecológico.
Nas serras do Sul, o fruto do medronheiro ganhou um peso económico e cultural que atravessa gerações. A sua colheita, fermentação e destilação deram forma a uma fileira que reúne pequenos produtores, cooperativas e um saber transmitido durante gerações.
A aguardente que daí nasce condensa numa gota a paisagem serrana e o engenho humano. Em paralelo, os seus frutos alimentam compotas, doces e licores, e o mel de medronheiro, escuro, amargo e riquíssimo em compostos fenólicos, destaca-se como um dos méis mais singulares de toda a flora portuguesa.
A compreensão científica desta espécie tem-se aprofundado progressivamente. Investigadores estudam a sua diversidade genética, procuram linhagens mais tolerantes à seca, analisam a sua resposta ecofisiológica ao fogo, descrevem compostos bioactivos com interesse nutracêutico e integram o medronheiro em modelos de mosaicos agroflorestais concebidos para enfrentar as pressões crescentes das alterações climáticas.
Assim, a espécie deixou de ser apenas um elemento tradicional da paisagem para se afirmar como protagonista nos debates sobre o futuro ecológico do país.
Partilho uma bela curiosidade sobre a cidade de Madrid, que escapa ao olhar apressado de tantos viajantes. No centro da Puerta del Sol ergue-se a figura de um urso empinado sobre as patas traseiras, estendendo-se para alcançar os frutos de um medronheiro.
Símbolo heráldico da capital espanhola desde a Idade Média, reúne numa única imagem a cidade e esta árvore persistente, celebrando a fertilidade, a resistência e a ligação profunda entre território e identidade.
E, no entanto, quantos passam diante dessa estátua sem reconhecer naquele arbusto de copa arredondada o nosso velho conhecido, o mesmo medronheiro que cresce nas serras portuguesas?
E quando deixo que todas estas imagens se aproximem, a árvore africana que continua a despertar investigação, os chimpanzés que convivem com o etanol natural dos frutos, os mamíferos que por vezes cedem ao apelo dos frutos fermentados e o medronheiro português com os seus globos vermelhos a iluminar o inverno, revela-se uma continuidade inesperada entre ecologia, comportamento animal e cultura humana.
E é nessa linha que o medronheiro encontra o seu lugar. Não como fonte de embriaguez, mas como espécie que entrelaça ciência, paisagem, economia rural e a memória sensível de quem o encontra nos caminhos do nosso país.



















