O fogo-corporação e a falência do pacto elementar
Desde tempos imemoriais, Terra, Água, Ar e Fogo partilharam o mesmo palco. Não eram deuses nem demónios. Eram forças com as quais aprendemos a viver, umas vezes em harmonia, outras em confronto.
A Terra oferecia pão e penúria, a Água trazia colheitas e dilúvios, o Ar soprava bonança e tempestade, o Fogo dava calor e deixava cinza. Foi deste diálogo permanente, ora terno ora violento, que evoluímos enquanto espécie.
Mas algo se quebrou. O Fogo transformou-se numa corporação moderna, com acionistas exigentes e ambições desmedidas. Já não é a queimada ritual que renovava o pasto ou o lume doméstico que aproximava famílias.
Tornou-se uma máquina de expansão, devoradora de hectares, pronta a transformar cada verão em relatório de lucros. E fá-lo em cumplicidade com um clima que nós próprios alterámos, cada vez mais seco, cada vez mais quente, cada vez mais favorável ao seu negócio.
Os outros elementos, com receio de perder quota de mercado, respondem com as suas armas.
A Água retira-se primeiro. Mostra que nas crises a inteligência está em gerir a escassez. Quando regressa, não o faz para nutrir. Volta em tempestades que arrastam encostas, abrem ravinas, engolem aldeias e cidades. Com elas, leva o valor das nossas próprias ações, afoga investimentos, destrói colheitas, leva memórias de gerações.
O Ar, cúmplice volúvel, sopra brasas a quilómetros de distância. Seca os campos e transforma o fogo num predador veloz. Recorda-nos que o carbono que as árvores acumularam ao longo de décadas volta ao céu com cada incêndio, carregando-o de calor. Cada hectare ardido é uma linha a vermelho no nosso balanço coletivo, um dividendo perdido para as gerações futuras.
A Terra, que sempre nos acolheu, começa a devolver pedra e pó. Perde-se a humidade, morrem os organismos invisíveis, o solo escoa-se para o mar e deixa atrás de si a nudez estéril das fragas. Com cada camada de solo perdida esvai-se o nosso capital natural, o património que garante o futuro das próximas colheitas e o rendimento de quem delas depende.
O que se anuncia não é um ciclo de renovação. É uma guerra comercial entre corporações elementares. E de tal guerra ninguém sairá vencedor.
A falência será sistémica. Sem solos férteis não há alimento. Sem árvores não há sombra. Sem água limpa não há vida. Sem ar respirável não há futuro. Colapsam os serviços gratuitos que a natureza, esse estado sagrado e invisível, guardião silencioso do equilíbrio, nos concedeu durante milénios.
Regulação do clima. Fertilização dos solos. Purificação do ar. E com eles ruirá também a nossa economia biológica, esse tecido frágil que sustenta o que comemos, o que bebemos e o que respiramos.
Somos a família que herdou estas empresas colossais sem vocação para as gerir. Confiámo-las a funcionários sem escrúpulos que transformaram prudência em ganância e equilíbrio em expansão insaciável. Também nós, na ânsia de consumir, demos força aos elementos. Ampliámos o poder do Fogo, a fúria da Água, a exaustão da Terra e a turbulência do Ar.
Inspirando-nos em Maquiavel, podemos dizer que quem herda um Estado deve conhecer-lhe as leis, vigiar os seus governantes e agir com virtù para o conservar. Caso contrário arrisca-se a perdê-lo. Falhámos nesse dever.
A nossa tarefa não é extinguir o Fogo. É reconquistar o papel de guardiões. Precisamos de convocar uma nova assembleia dos elementos, reescrever o pacto, definir fronteiras de convivência.
Já não se trata apenas de responsabilidade social. O restauro ecológico tornou-se investimento vital, a base sobre a qual se constrói qualquer mercado estável. Como gerar riqueza se os elementos não oferecem condições de estabilidade?
Precisamos de um verdadeiro mercado de restauro, onde cada hectare recuperado seja visto como património reconstituído, como prémio de seguro contra o colapso. Urgem bancos de sementes com juros simbólicos, capazes de devolver à Terra a riqueza natural perdida e de resgatar o capital ecológico de que dependemos.
Devemos mobilizar as tecnologias deste tempo, satélites, sensores, drones, inteligência artificial, para vigiar o equilíbrio e impedir que qualquer elemento volte a dominar.
E quando o poder tiver de ser exercido, será o da própria natureza. Não como regime humano, mas como lei universal, imutável, que rege o equilíbrio do cosmos. Uma justiça que não se escreve em códigos legais, mas se revela no pulsar das estações, no avanço e recuo das marés, na cadência da chuva. Uma lei sagrada que serve todos os habitantes, visíveis e invisíveis.
Só assim reabriremos o espaço para uma economia dos elementos justa, inventiva e fecunda. Só assim o pacto antigo poderá ser renegociado, com cláusulas de equidade para todas as partes. Será uma revolução de mercado. Não para o lucro de uns poucos. Mas para a sobrevivência de todos.
"O fogo moldou a história da vida tanto quanto a própria água; mas, como qualquer tecnologia, precisa de ser domesticado de novo, sob pena de se tornar no agente da nossa ruína."
Mas algo se quebrou. O Fogo transformou-se numa corporação moderna, com acionistas exigentes e ambições desmedidas. Já não é a queimada ritual que renovava o pasto ou o lume doméstico que aproximava famílias.
Tornou-se uma máquina de expansão, devoradora de hectares, pronta a transformar cada verão em relatório de lucros. E fá-lo em cumplicidade com um clima que nós próprios alterámos, cada vez mais seco, cada vez mais quente, cada vez mais favorável ao seu negócio.
Os outros elementos, com receio de perder quota de mercado, respondem com as suas armas.
A Água retira-se primeiro. Mostra que nas crises a inteligência está em gerir a escassez. Quando regressa, não o faz para nutrir. Volta em tempestades que arrastam encostas, abrem ravinas, engolem aldeias e cidades. Com elas, leva o valor das nossas próprias ações, afoga investimentos, destrói colheitas, leva memórias de gerações.
O Ar, cúmplice volúvel, sopra brasas a quilómetros de distância. Seca os campos e transforma o fogo num predador veloz. Recorda-nos que o carbono que as árvores acumularam ao longo de décadas volta ao céu com cada incêndio, carregando-o de calor. Cada hectare ardido é uma linha a vermelho no nosso balanço coletivo, um dividendo perdido para as gerações futuras.
A Terra, que sempre nos acolheu, começa a devolver pedra e pó. Perde-se a humidade, morrem os organismos invisíveis, o solo escoa-se para o mar e deixa atrás de si a nudez estéril das fragas. Com cada camada de solo perdida esvai-se o nosso capital natural, o património que garante o futuro das próximas colheitas e o rendimento de quem delas depende.
O que se anuncia não é um ciclo de renovação. É uma guerra comercial entre corporações elementares. E de tal guerra ninguém sairá vencedor.
A falência será sistémica. Sem solos férteis não há alimento. Sem árvores não há sombra. Sem água limpa não há vida. Sem ar respirável não há futuro. Colapsam os serviços gratuitos que a natureza, esse estado sagrado e invisível, guardião silencioso do equilíbrio, nos concedeu durante milénios.
Regulação do clima. Fertilização dos solos. Purificação do ar. E com eles ruirá também a nossa economia biológica, esse tecido frágil que sustenta o que comemos, o que bebemos e o que respiramos.
Somos a família que herdou estas empresas colossais sem vocação para as gerir. Confiámo-las a funcionários sem escrúpulos que transformaram prudência em ganância e equilíbrio em expansão insaciável. Também nós, na ânsia de consumir, demos força aos elementos. Ampliámos o poder do Fogo, a fúria da Água, a exaustão da Terra e a turbulência do Ar.
Inspirando-nos em Maquiavel, podemos dizer que quem herda um Estado deve conhecer-lhe as leis, vigiar os seus governantes e agir com virtù para o conservar. Caso contrário arrisca-se a perdê-lo. Falhámos nesse dever.
A nossa tarefa não é extinguir o Fogo. É reconquistar o papel de guardiões. Precisamos de convocar uma nova assembleia dos elementos, reescrever o pacto, definir fronteiras de convivência.
Já não se trata apenas de responsabilidade social. O restauro ecológico tornou-se investimento vital, a base sobre a qual se constrói qualquer mercado estável. Como gerar riqueza se os elementos não oferecem condições de estabilidade?
Precisamos de um verdadeiro mercado de restauro, onde cada hectare recuperado seja visto como património reconstituído, como prémio de seguro contra o colapso. Urgem bancos de sementes com juros simbólicos, capazes de devolver à Terra a riqueza natural perdida e de resgatar o capital ecológico de que dependemos.
Devemos mobilizar as tecnologias deste tempo, satélites, sensores, drones, inteligência artificial, para vigiar o equilíbrio e impedir que qualquer elemento volte a dominar.
E quando o poder tiver de ser exercido, será o da própria natureza. Não como regime humano, mas como lei universal, imutável, que rege o equilíbrio do cosmos. Uma justiça que não se escreve em códigos legais, mas se revela no pulsar das estações, no avanço e recuo das marés, na cadência da chuva. Uma lei sagrada que serve todos os habitantes, visíveis e invisíveis.
Só assim reabriremos o espaço para uma economia dos elementos justa, inventiva e fecunda. Só assim o pacto antigo poderá ser renegociado, com cláusulas de equidade para todas as partes. Será uma revolução de mercado. Não para o lucro de uns poucos. Mas para a sobrevivência de todos.
"O fogo moldou a história da vida tanto quanto a própria água; mas, como qualquer tecnologia, precisa de ser domesticado de novo, sob pena de se tornar no agente da nossa ruína."

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