O plátano e a arquitetura do fresco

Um plátano nunca se impõe, mas também nunca passa despercebido. Há qualquer coisa na sua presença que nos detém sem esforço. À primeira vista parece apenas uma árvore monumental de sombra, uma sentinela vegetal que vigia avenidas, praças antigas, jardins ribeirinhos onde o tempo escorre com a lentidão dos rios velhos.

Mas basta demorar o olhar para perceber que o seu tronco malhado é mais do que casca. É pele viva, mapa de geografias sucessivas, mosaico de placas que se soltam como escamas luminosas e revelam camadas onde a luz repousa e o dia se demora. É uma pele que conta histórias de crescimento, de fogo solar, de noites frias, de anos húmidos e de verões secos.

O plátano-comum (Platanus × acerifolia) é um híbrido antigo, nascido do encontro improvável entre o Oriente e o Ocidente biogeográfico da Europa e da América. Vive connosco há séculos porque resiste ao que poucas árvores suportariam nas cidades. É um híbrido que carrega nas veias a resistência do Oriente e a robustez do Ocidente, como se tivesse sido criado de propósito para suportar o excesso humano.

Tolera o ruído metálico das ruas, o frio que desce pelas fachadas, a poeira que se acumula nas folhas como cinza de um fogo contínuo, o vento que se enrosca entre prédios, as cicatrizes de podas apressadas que ferem a madeira e expõem a alma do tronco. Mesmo assim cresce, abre a copa como quem abre um gesto de abrigo e oferece sombra larga onde o calor mais intenso se dissolve. Debaixo dele o calor abate-se, as sombras tomam forma, a cidade abranda.

Nos dias de sol cortante, quando o ar pesa como um muro de calor, o plátano permanece vigilante. As raízes, alimentadas pela humidade que o solo lhes oferece, sustentam a circulação discreta da água que sobe pelo tronco e chega à copa, onde se desfaz em frescura.

Nas folhas, essa água transforma-se numa neblina fina, impercetível aos olhos, mas evidente na pele, como um sopro que suaviza o calor. A transpiração converte radiação em alívio, calor em respiração leve, luz abrasadora em brisa suportável, num serviço silencioso que quase ninguém vê e ainda menos agradecem. 


A cidade confia nele para ser refúgio. A sua copa densa baixa a temperatura do ar e das pedras que a rodeiam e, em certas praças, basta atravessar um corredor de plátanos para sentir o corpo regressar a uma temperatura ancestral, a um lugar onde o corpo recorda que nem sempre viveu rodeado de betão. 


Sabe-se hoje que um único plátano adulto, bem enraizado e com água suficiente, pode devolver à atmosfera dezenas de litros de água por hora durante uma onda de calor. É um milagre físico, um ato de sobrevivência e de generosidade vegetal que se pressente em cada brisa que passa entre as folhas largas, com nervuras que lembram a mão aberta de um gigante.

Há quem só conheça o plátano através do incómodo que traz. Os pólenes que circulam na primavera são pequenos mensageiros de um diálogo antigo entre árvore e vento. Nas cidades, porém, o ar está carregado de químicos que se agarram a esses pólenes, alteram-lhes a superfície e tornam-nos mais agressivos para quem respira.

Dióxido de azoto e ozono mudam as proteínas do pólen e ampliam o seu efeito alérgico. É um drama que não nasce do plátano, mas do modo como vivemos dependentes de máquinas e cercados pela poluição que elas produzem. 


Ainda assim, o plátano excede o incómodo que alguns lhe atribuem e a sombra generosa que todos lhe reconhecem. A quem se aproxima com atenção e curiosidade, a árvore revela perfumes que são quase um segredo.

Em certos dias de Outono, quando a humidade pousa leve nas folhas e o frio ainda não chegou, a copa liberta um aroma quente, feito de uma doçura íntima que mistura calor vegetal com a quietude das tardes douradas, um perfume que lembra o crepúsculo a pousar suavemente sobre a madeira.

Em alguns anos, também na primavera, antes de a frutificação se completar, esse sopro aromático emerge tímido, como um indício de festa que só o vento reconhece.

Poucos percebem de onde chega este perfume. Quase ninguém suspeita que uma árvore sem flor visível naquele momento seja capaz de perfumar o ar com tamanha delicadeza. Talvez por isso, quando o aroma se revela, o espanto instala-se sem esforço.

Em certos dias, sobretudo quando o calor e a humidade aceleram a vida microscópica nas folhas e frutos caídos, o ar junto aos plátanos pode carregar um odor a espirro ou halitose, por vezes desagradável.

É a matéria que se transforma, o ciclo natural da decomposição a manifestar-se no olfato, a outra face de uma árvore que nunca se entrega inteiramente ao previsível. Assim é o plátano, capaz de extremos que só o nariz mais atento reconhece e que fazem de cada passeio uma pequena viagem sensorial.

Os meus filhos chamam-lhe vaca da floresta. Não é metáfora ingénua. Há no tronco manchado algo de bovino e pacífico. Há no porte uma força lenta que acolhe e protege.

Foi com esta imagem que, desde muito pequenos, os ensinei a reconhecer um plátano, mesmo no inverno, quando a árvore se despe de tudo e fica apenas o desenho dos ramos a recortar o céu. As manchas vivas do tronco bastam para o denunciar. É assim que começa o encantamento botânico: a partir de uma mancha nasce uma história.

O plátano mastiga o ar pesado das cidades e devolve-nos outro ar possível. Une margens de ruas, constrói pontes invisíveis de sombra entre fachadas, cria corredores frescos por onde pássaros se aventuram e insetos encontram abrigo.

Filtra partículas que nos fariam mal. É uma espécie exótica, sim, mas habituou-se a viver connosco como mediador silencioso entre o betão e o céu, intérprete discreto entre o mundo mineral e o mundo biológico.

Entre a multidão de plátanos anónimos no nosso território, há alguns gigantes com nome próprio, quase personagens da história do país. No coração do Alentejo, em Portalegre, vive aquele que é hoje o plátano mais célebre e um dos mais antigos do país, o Plátano do Rossio, um gigante plantado em 1838 pelo médico e botânico José Maria Grande.

Quase dois séculos depois, a árvore continua de pé, com um tronco de vários metros de perímetro e uma copa tão larga que já foi descrita como a maior da Península Ibérica. A sua idade veneranda e a sombra imensa valeram-lhe o título de árvore de interesse público ainda em 1938, sendo lembrado em textos oficiais como a mais antiga árvore portuguesa com esta classificação. É uma espécie de patriarca verde, depositário de conversas, comícios, encontros e confidências que o tempo foi empilhando nos ramos. 


Espalhados pelo país, outros plátanos assinalam a persistência desta aliança antiga entre cidade e árvore. Na Várzea de Colares, uma alameda de dezenas de plátanos foi recentemente classificada como arvoredo de interesse público, confirmando o valor monumental da espécie na paisagem histórica.

Junto ao Vouga, em Albergaria-a-Velha, dois plátanos com mais de um século, também classificados, estendem a copa sobre mesas de pedra e merendas de fim de tarde, como se fossem versões mais jovens, mas igualmente solenes, do velho colosso de Portalegre.

No Porto, os plátanos mais antigos não vivem muito longe dos lugares da minha infância. No Jardim João Chagas, a antiga Cordoaria, uma alameda de plátanos acompanha há mais de um século e meio o traçado triangular do jardim, herdeira da arborização oitocentista que ali transformou um terreiro de cordoeiros num passeio público romântico. 


Muitos foram podados, alguns substituídos, outros tombaram em temporais, mas o alinhamento persiste como um túnel de sombra que atravessa gerações de portuenses.

Mais acima, na Quinta da Macieirinha, um plátano-comum com mais de cem anos domina o jardim em socalcos, abrindo a copa sobre as fontes de granito e a vista para o Douro, como se quisesse lembrar discretamente que o Porto também tem os seus velhos gigantes vegetais, tão antigos e eloquentes como qualquer fachada de pedra.

Quem recolher uma folha caída, ou um fruto ainda fechado, entra nesse pacto. O cheiro que permanece nos dedos é uma fração tímida do perfume que a árvore liberta quando a estação acerta na sua alquimia.

Há dias em que o aroma doce segue connosco no regresso a casa e outros em que o odor agreste nos lembra que tudo o que vive também se transforma. Assim aprendemos que o plátano não é uma árvore indiferente. É um ser colossal que respira, transpira, sofre, alivia, cura, filtra, perfuma e altera o clima à pequena escala, enquanto nos observa passar debaixo da sua copa.

No fundo, o plátano é uma presença que ensina. Mostra-nos como a ciência, a memória e o olfato se cruzam num só organismo. Recorda-nos que mesmo as árvores que tomamos por comuns escondem mistérios que só revelam a quem caminha devagar e respira com atenção. 


E confirma que, no coração das cidades, mesmo nas mais duras, ainda existem gigantes capazes de criar frescura, perfume e espanto no mesmo dia, se tivermos a delicadeza de reparar.

A sua natureza foi talhada para crescer com amplitude, para desenhar copas largas que respiram céu e raízes que procuram o subsolo com a firmeza tranquila de quem precisa de território para crescer inteiro. Quando plantado onde a terra lhe dá margem, torna-se um colosso pacífico que protege quem passa e sustenta a frescura das ruas. 


Durante décadas, o crescimento apressado das cidades ignorou este requisito elementar. Muitos plátanos foram enfiados em canteiros exíguos, encostados a fachadas, comprimidos entre arruamentos, condenados desde o início a viver menos como árvores e mais como obstáculos.

E o que nasce sem espaço acaba invariavelmente nas mãos das podas severas, daquelas intervenções que cortam mais do que ramos, cortam a dignidade da forma e a integridade da madeira.

Assim surgiram as mutilações que tantos conhecem: copas reduzidas a torres amputadas, ramos transformados em cotos, troncos feridos por cortes reincidentes que abrem portas a fungos, podridões, fraquezas estruturais. Não foi o plátano que falhou. Foi o planeamento que o esqueceu.

E, esquecendo-o, alimentou durante anos uma prática que ainda hoje se vê, uma espécie de violência urbana cometida em nome de uma gestão que não soube antecipar o tamanho da vida que estava a plantar.

Por isso, cada novo plátano exige mais do que boa vontade. Exige visão. Exige terreno suficiente para que a árvore cresça com a forma que a natureza lhe deu. Exige o reconhecimento de que uma árvore não deve ser moldada à medida da pressa humana, mas integrada num desenho que a respeite.

Só assim as cidades deixarão de podar para remediar erros e passarão a plantar para evitar feridas. E só então o plátano poderá cumprir aquilo que sempre prometeu: ser sombra, ser frescura, ser presença íntegra no coração das ruas.


 

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Da tempestade à responsabilidade

As chuvas deste fim-de-semana voltaram a lembrar-nos a fragilidade do território. No Algarve, um tornado associado à tempestade Cláudia arrancou estruturas como se fossem folhas secas. No litoral norte e no vale do Tejo, as ruas transformaram-se em rios breves que carregam tudo o que encontram.

A tempestade trouxe ventos fortes, precipitação intensa e episódios súbitos de inundação, tal como já vinha sendo antecipado pelos serviços meteorológicos europeus e nacionais. Pelo menos uma vida perdeu-se e dezenas de pessoas ficaram feridas na zona de Albufeira. 

Noutras regiões, a Proteção Civil registou centenas de ocorrências ligadas a inundações, queda de árvores e danos em equipamentos públicos. Estes factos são reais e recentes e mostram que o clima que conhecíamos já não existe.

Ao mesmo tempo, a investigação do The Guardian revela que milhões de casas no Reino Unido passam a integrar áreas de risco cada vez mais elevado, com seguros que poderão tornar-se incomportáveis e com zonas que poderão mesmo deixar de oferecer condições de vida sem adaptações profundas. 

O que se torna evidente no Reino Unido reflete um caminho que também trilhamos. As projeções que ali ganham forma ressoam aqui, como um eco que atravessa o Atlântico e nos encontra desprevenidos. O alerta dado pelo The Guardian em outubro revela toda a sua pertinência numa altura em que Portugal, de norte a sul, experimenta a inquietação de um clima cada vez mais imprevisível.

Se nada fizermos, veremos cidades portuguesas sujeitas a enxurradas urbanas cada vez mais frequentes, encostas saturadas que cedem, margens ribeirinhas que deixam de oferecer segurança e bairros expostos sempre que uma tempestade atlântica ganha intensidade.

A ciência explica que a combinação de chuva extrema, solos impermeabilizados e margens degradadas aumenta a probabilidade de cheias rápidas e danos materiais significativos. Não é alarmismo. É a realidade observada e documentada.

Ainda é possível escolher o rumo que damos ao território. O restauro ecológico devolve ao território a capacidade de respirar. Zonas húmidas restauradas, margens renaturalizadas, solos vivos capazes de infiltrar a chuva, corredores verdes que ligam bacias e retardam o escoamento. 

Estas soluções baseadas na natureza são recomendadas pela Agência Europeia do Ambiente e pelo IPCC como peça fundamental na adaptação às alterações climáticas. Não competem com a engenharia convencional. Trabalham ao seu lado, multiplicam a sua eficácia e criam cidades verdadeiramente seguras.

As empresas portuguesas têm aqui um papel decisivo. Podem transformar os seus terrenos em espaços de retenção, substituir superfícies impermeáveis por solos vivos, plantar vegetação autóctone que estabiliza taludes e recolher água da chuva para aliviar a pressão sobre as redes urbanas. Podem integrar o restauro ecológico nos seus compromissos climáticos, tornando-se exemplo de responsabilidade e visão.

Os municípios, por sua vez, têm a escala e a capacidade de transformar o risco. São eles que podem renaturalizar margens, recuperar linhas de água, criar parques inundáveis, identificar zonas vulneráveis e ajustar o planeamento urbano para impedir que uma cheia se transforme num desastre. São eles que podem mobilizar comunidades, escolas, empresas e associações para uma resiliência partilhada.

Este fim-de-semana trouxe-nos uma lição severa, mas também uma evidência que já não se pode contornar. O futuro já não cabe no calendário antigo das estações, mas ainda depende das escolhas que fazemos agora.

Se escutarmos a ciência, se aprendermos com o que o Reino Unido enfrenta e com o que Portugal viveu nestes dias, percebemos que a hora de agir é agora. O restauro ecológico é mais do que uma intervenção ambiental. É uma estratégia de proteção, um gesto de lucidez e um pacto entre o lugar e quem nele habita. 

Se soubermos escutar esta mensagem deixada pela água nos caminhos, estaremos mais perto de construir cidades que não temem a chuva e paisagens que devolvem segurança à vida que nelas floresce.
 

 
 
 

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A silenciosa lotaria das maçãs

Em cada caroço de maçã dorme uma história inteira que ainda não foi escrita. Sabemos hoje, com o rigor tranquilo da genética, que a macieira doméstica (Malus domestica) guarda um genoma espantoso, com cerca de 57.000 genes, mais do dobro dos que sustentam o corpo humano.

Quem sabe se não foi essa abundância secreta que levou a tradição a escolhê-la como fruto do pecado original, símbolo antigo de tudo o que desperta desejo e curiosidade? 

Uma maçã pode oferecer algumas dezenas de sementes, todas distintas entre si, cada uma capaz de germinar como uma árvore inédita, com outro perfume, outra textura, outra cor, outro sabor.

Num fruto tão comum esconde-se uma constelação de futuros improváveis. Qualquer uma dessas sementes pode transformar-se na próxima Fuji ou Granny Smith. Cada maçã é uma pequena lotaria biológica, um tesouro discreto pousado na palma da mão.

E essas sementes, múltiplas e singulares, carregam combinações únicas de genes, prontas a dar origem a árvores de carácter próprio, com sabores e cores que jamais se repetem. O que parece apenas um fruto banal revela-se, visto ao nível do ADN, uma nuvem vibrante de possibilidades. Cada caroço é, silenciosamente, uma promessa extraordinária. 

O projeto Some Interesting Apples, nas paisagens ventosas da Cornualha, leva esta ideia às últimas consequências poéticas e científicas. Desde 2019, William Arnold e James Fergusson têm procurado macieiras espontâneas nascidas de caroços descartados em sebes, bermas e terras marginais, e já localizaram mais de 600 destas árvores. 

Chamam-lhes wilding apples (macieiras-bravias) de origem doméstica que crescem em raiz própria, apenas porque um dia alguém acabou de comer uma maçã e lançou o resto ao chão. A partir destas árvores provam, escolhem, enxertam, fotografam, e levam garfos para um pomar-mãe criado com instituições locais, onde se experimentam novas combinações para um clima cada vez mais instável.

Fontes recentes descrevem este pomar como o primeiro, no Reino Unido, inteiramente dedicado a árvores nascidas de caroços atirados para as sebes e bermas, um campo experimental vivo onde dezenas de árvores enxertadas a partir de macieiras-bravias começam agora a ser observadas como possíveis cultivares rústicas do futuro.

Nas provas de sabor anuais em Kestle Barton, os frutos destas árvores são estudados como parte de um exercício contínuo de investigação, onde a diversidade de sabores e texturas serve de guia para compreender a resiliência e o potencial destas macieiras num clima errático. 

Em Portugal, a história da macieira é antiga e profundamente enraizada. A macieira doméstica está amplamente distribuída no território, cultivada desde há séculos em regiões como o Minho, Trás-os-Montes, Beira Interior e Oeste.

A macieira-brava europeia (Malus sylvestris) é autóctone no norte e centro do país, onde se encontra sobretudo em margens luminosas de bosques, sebes antigas e linhas de água, crescendo de forma discreta e resiliente. 

Esta espécie nativa enfrenta pressões significativas, desde a perda de habitat até à hibridação com macieiras cultivadas, o que exige um olhar cuidadoso sempre que se estuda ou se intervém sobre populações espontâneas para garantir a proteção das linhagens verdadeiramente silvestres.

O coração verde do Minho é um dos refúgios mais ricos desta diversidade. O trabalho de prospeção conduzido pela Escola Superior Agrária de Ponte de Lima revelou, já em 2015, mais de 60 variedades regionais preservadas por agricultores que mantiveram pomares antigos e árvores de família. Nos anos seguintes, este número ultrapassou 100. 

Estas variedades sobreviveram porque guardavam um sabor estimado, uma adaptação silenciosa ao solo húmido e às brumas da serra, uma tenacidade agrícola que o tempo não conseguiu apagar.

Muitas estavam prestes a desaparecer, vítimas da uniformização comercial que favoreceu poucas cultivares globais e empurrou para a sombra tudo o que era singular. Ainda assim, no Minho, estas árvores continuaram a resistir, testemunhas de uma memória agrícola que nunca deixou de pulsar.

Ao contrário da Cornualha, não existe entre nós um levantamento sistemático de macieiras espontâneas nascidas de semente, mas tudo o que a ciência portuguesa tem revelado aponta para um património genético vasto e vivo. O Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária descreve a riqueza das variedades regionais portuguesas e a urgência da sua preservação.

O Catálogo Nacional de Variedades reúne cultivares tradicionais como Bravo de Esmolfe, Porta-da-Loja, Casa Nova, Malápio de Gouveia, Pêro de Coura, Camoesa, Pêro Pipo, Verdeal e tantas outras. No Minho, a investigação prossegue com análises morfológicas e biomoleculares de acessos que ajudam a construir um retrato rigoroso do nosso património.

Estudos com marcadores moleculares, quer microssatélites quer ISSR, confirmam que as coleções portuguesas de macieira guardam uma diversidade genética elevada, com muitos alelos raros e arranjos próprios das cultivares autóctones. Em alguns casos, como na Bravo de Esmolfe, analisaram-se mais de 100 clones, revelando diversidade intravarietal que confirma a profundidade do nosso património. 

Uma síntese ibérica recente mostra ainda que o noroeste da Península, incluindo o Minho, constitui um dos reservatórios mais importantes da variabilidade europeia de Malus domestica.

Na Madeira, estudos universitários mostram que variedades insulares como Pêro Domingos, Maçã Barral, Maçã Cara de Dama ou Pêro Calhau guardam um carácter próprio moldado pela altitude, pela orografia e pela luz atlântica. Estas variedades foram caracterizadas morfofenologicamente e quimicamente, revelando perfis distintos com valor para conservação e uso local.

Os documentos da CCDRC confirmam que muitas destas variedades tradicionais revelam boa adaptação a sistemas de agricultura biológica e que a sua conservação em uso mantém viva a agrobiodiversidade local.

A especificação das Maçãs de Basto descreve com precisão o perfil físico-químico de variedades como Pipo de Basto e Verdeal, mostrando como o território imprime nos frutos uma identidade que não se repete noutro lugar.

Estudos bioquímicos recentes revelam ainda que variedades tradicionais portuguesas, como a Bravo de Esmolfe, os Malápios ou certos Pêros antigos, apresentam teores elevados de compostos fenólicos e atividade antioxidante significativa, afirmando cientificamente aquilo que o paladar popular sempre soube: estas maçãs guardam mais do que memória, guardam química viva.

Portugal tem condições científicas, culturais e ecológicas para desenvolver um projeto inspirado no Some Interesting Apples, desde que feito com rigor e respeito pela nossa realidade. A diversidade existe e está documentada.

As variedades regionais estão estudadas e conservadas em coleções vivas. A macieira-brava cresce ainda nas margens dos nossos vales. Vários estudos portugueses confirmam diferenças marcadas entre cultivares regionais ao nível morfológico, bioquímico e sensorial.

A única peça que ainda nos falta é a que torna o projeto inglês tão singular: a procura sistemática de macieiras nascidas de caroços lançados ao acaso. Não porque faltem árvores, mas porque ainda não caminhámos o país com esse olhar.

Assim, um projeto português inspirado em Some Interesting Apples seria não só possível como cientificamente justificado. Exigiria apenas que uníssemos o que já temos: estudos, coleções, variedades regionais, bancos de germoplasma, memória agrícola, com aquilo que ainda falta: caminhar, observar, provar e mapear as árvores que nasceram sozinhas, estas pequenas lotarias genéticas que esperam ser descobertas.

Cada semente pode esconder uma surpresa. Cada caroço é uma promessa de futuro. Tal como na Cornualha, cada caroço de maçã lançado num caminho português pode esconder a próxima surpresa, a próxima história, o próximo sabor que ainda não provámos.

Para encerrar este texto, deixo o convite para ver o pequeno filme realizado por Elena Heatherwick, criado em colaboração com William Arnold e James Fergusson, produzido pela Ffern e pela Pal Studios.

É um retrato breve, luminoso e certeiro do espírito do Some Interesting Apples. As árvores, germinadas de caroços esquecidos, a beleza imperfeita dos frutos inesperados, o espanto que renasce no gesto simples de provar algo que nunca existiu antes.

Em poucos minutos, revela com uma clareza espantosa aquilo que as palavras tentam alcançar, mas não conseguem reter por completo. Quem o vir até ao fim perceberá que este movimento não é sobre maçãs. É sobre olhar a paisagem com renovada atenção. É sobre regressar ao princípio, aquele que esquecemos que existia.


 

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Nêsperas e magnórios

Em Portugal existe uma linha invisível que não se aprende em atlas algum. É uma fronteira feita de sotaques, onde o fruto que o Norte chama magnório se transforma, ao descer a estrada, na nêspera que o Sul conhece desde sempre. Uma mudança tão subtil que mais parece obra da luz do próprio caminho.

A nespereira (Eriobotrya japonica), que chegou ao país vinda de horizontes orientais, espalhou-se pelas cidades como quem encontra refúgio. Cresce em quintais antigos, em hortas urbanas onde o tempo trabalha devagar, em logradouros silenciosos onde o cimento deixa fendas suficientes para que a vida regresse. 

Adapta-se a solos pobres, suporta ventos salgados, não exige cuidados. Algumas nascem do gesto distraído de quem atira um caroço para o chão. Outras são obra de aves que pousam um instante e seguem viagem. Assim, com esta paciência vegetal, surgem árvores que enchem o ar de sombra e de fruto.

No Porto e em Vila Nova de Gaia a sua presença é quase clandestina. Acompanha os taludes do comboio, vigia pátios que ninguém visita, ergue-se por trás de muros que escondem mais histórias do que recordamos. Muitas são anónimas, sem data nem autor. Simplesmente acontecem.

Não as aprecio particularmente, até que por esta altura do ano me fazem lembrar porque são indispensáveis, muito para além dos seus apreciados frutos.

Entre outubro e fevereiro, de forma mais evidente em novembro, desdobram-se as pequenas flores brancas e, de súbito, o ar enche-se de um perfume que nos apanha desprevenidos. Não demora muito até que nos convide a virar a cabeça, para tentarmos perceber de onde vem. 

É um aroma doce e floral, com qualquer coisa de mel e citrinos, inebriante, extraordinário, queremos sempre mais. Quem caminha pelas ruas apercebe-se dele, mesmo sem nunca conseguir ver a árvore, há quem a procure sem nunca a encontrar.

Muitas vezes está escondida num quintal ou por detrás de uma parede. O perfume, porém, não conhece barreiras. Passa por entre pedras, atravessa escadas, dobra esquinas como se procurasse alguém especial.

E enquanto as flores se oferecem às abelhas, no interior dos ramos prepara-se a doçura da primavera. Os frutos amadurecem devagar durante o inverno e revelam-se apenas no início de abril ou maio, quando a estação ainda está a aprender a ser clara. 

Talvez seja essa generosidade precoce que fez da espécie companheira de tantos lugares do mundo. Na China, onde nasceu. No Japão, que a cultivou com devoção. Em países mediterrânicos e no Brasil, onde os frutos enchem mesas e dão origem a doces e licores.

Entre nós os nomes mudam de região para região, mas a árvore permanece a mesma. É esta diversidade de palavras que revela a intimidade antiga entre o território e a espécie que o habita.

Não deve, porém, ser confundida com a nespereira-europeia (Mespilus germanica), de folhas caducas e fruto castanho, uma presença mais rara nos nossos jardins. A sua fruta amadurece apenas quando o frio a vence e a polpa se entrega. É uma parente distante, quase esquecida, enquanto a nespereira vinda do Oriente se tornou parte silenciosa da nossa paisagem quotidiana.

Esta é a imagem de uma árvore discreta que desenha linhas invisíveis sobre o mapa do país. Entre magnórios e nêsperas, entre outonos perfumados e primaveras luminosas, a nespereira recorda-nos que uma espécie vinda de longe pode tornar-se casa. 
 



 

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Disco de Ouro

Em 1977, a NASA lançou para o céu duas mensageiras de longa travessia, as sondas Voyager 1 e Voyager 2, destinadas a aproximar os olhos da humanidade dos mundos gigantes de Júpiter e Saturno e das luas que os rodeiam como lanternas antigas. 

A Agência Espacial dos Estados Unidos convocou então um comité de sábios, presidido por Carl Sagan da Universidade de Cornell, confiando-lhe a tarefa de escolher aquilo que, partindo da Terra, pudesse falar ao desconhecido. Sons, imagens e memórias foram reunidos para que qualquer forma de vida extraterrestre, ou humanos de um futuro distante, pudesse entrever quem fomos. 

Sagan e a sua equipa recolheram 115 imagens e uma delicada orquestra de sons naturais. O trovão, o vento, o rumor das ondas, o canto das baleias e dos pássaros compõem este coro primordial. A eles juntaram peças musicais de diferentes épocas e culturas, e saudações pronunciadas em 55 línguas, como se o planeta se pudesse levantar inteiro para dizer um simples olá.

Cada Voyager leva no ventre um disco de cobre revestido a ouro, de 12 polegadas, guardando sons e imagens escolhidos para mostrar a vastidão e a ternura da vida terrestre. Uma cápsula do tempo lançada no silêncio, oferecendo a história de um mundo a quem, algum dia, a possa encontrar.

Quando vi pela primeira vez a coleção completa das 115 imagens, detive-me com espanto em vários pormenores. A única imagem de uma planta apresentada em grande detalhe é a de uma folha de morangueiro (Fragaria sp.). 

Entre tantas espécies que sustentaram e moldaram a existência humana, por que precisamente esta? Talvez porque, mesmo sem o saber, alguém quis deixar no espaço um eco de Strawberry fields forever.

Mas a folha não viaja sozinha. Entre as mensagens visuais seguem outros lampejos botânicos, discretos, mas luminosos. Folhas caídas no outono, espalhadas no chão. Uma árvore serena rodeada de narcisos amarelos. A antiga colheita do algodão. O gesto simples de um homem que leva à boca um cacho de uvas. O voo suspenso de um inseto diante de flores delicadas. 

São fragmentos de um jardim planetário enviados para longe, escolhidos para contar que o azul profundo da Terra nasce das suas águas inquietas, que a vida se levanta em ramos e flores, que o tempo se revela no deslizar da luz sobre as folhas tocadas pelo vento.

Se hoje preparássemos uma nova sonda, o olhar seria outro. As imagens não mostrariam apenas a exultação da vida, mas também a sua vulnerabilidade. Mostrariam um planeta onde a humanidade reduziu vastas florestas, deixando cerca de 67% da cobertura florestal original, perdendo aproximadamente 33% ao longo dos últimos milénios.

Mostrariam oceanos imensos e feridos, ainda tão pouco conhecidos que menos de 5% foram explorados com verdadeiro detalhe científico. Surgiria, sem artifícios, a realidade silenciosa de uma sexta extinção em marcha, acelerada pelo passo pesado da nossa própria espécie.

E revelariam, por fim, a nossa curiosa urgência em procurar outros mundos quando ainda conhecemos tão pouco deste. Todos os anos são descritas milhares de novas espécies, desde organismos marinhos a plantas e insetos, revelando relações invisíveis que sustentam a vida. É como se habitássemos um livro vivo do qual apenas abrimos a primeira página. 

A narrativa seria outra. Menos triunfante, mais humilde. Mais próxima da verdade. Cada imagem guardaria a fragilidade cintilante de um pedido de ajuda e a memória profunda do lugar a que pertencemos. 

As sondas, depois de atravessarem o vasto território dominado pelo vento solar, entraram na heliosheath em 2004, no caso da Voyager 1, e em 2007, no caso da Voyager 2. Mais tarde, a Voyager 1 cruzou a heliopausa a 25 de agosto de 2012, tornando-se o primeiro objeto humano a alcançar o espaço interestelar.

A Voyager 2 seguiu-lhe o destino a 5 de novembro de 2018. Ambas continuam a sua viagem e encontram-se hoje a navegar pelo espaço interestelar, a Voyager 1 a mais de 25 mil milhões de quilómetros da Terra e a Voyager 2 a mais de 20 mil milhões de quilómetros, comunicando ainda com a NASA através de sinais cada vez mais ténues.

Mais informações sobre os discos de ouro nesta ligação: https://goldenrecord.org/#universum
 
 



 
 

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A natureza não tem logótipo

Este é seguramente um desafio interessante! Diria que a maioria não estará à altura de o superar… 

A natureza está repleta de padrões, mas já quase não os vemos. Durante séculos bastava olhar para o céu para pressentir a chuva na dança das nuvens.

Reconhecíamos as plantas pelo sabor, pela cura, pelos segredos que guardavam. Tínhamos nos sentidos uma sabedoria antiga que o tempo adormeceu.

A boa notícia é que esse saber não se perdeu, apenas descansa à espera de quem o queira redescobrir. Podemos voltar a aprender o nome das plantas, a ler os sinais da terra, a reconhecer o que é essencial.

Não seria maravilhoso se começássemos a promover o reconhecimento da natureza tal como promovemos o reconhecimento das marcas? 
 
Ela não conta com orçamentos para publicidade, campanhas, slogans cativantes e elaborados, mas talvez possamos ser nós a dar-lhe voz. Anunciar a natureza é, afinal, dar voz ao que ainda nos sustenta verdadeiramente.

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Herbanário sonoro da Humanidade

Há músicas que atravessam o tempo como sementes levadas pelo vento. Germinam devagar, mesmo quando quem as ouve não percebe de imediato que nelas se fala do planeta que habitamos. Em cada verso há um alerta, um murmúrio de árvores, mares e flores disfarçado sob a melodia.

Em 1967, John Lennon regressou às memórias da infância em Liverpool para escrever Strawberry Fields Forever. O campo de morangos do Exército de Salvação era um abrigo entre árvores e risos, um refúgio onde o tempo parecia suspenso. A canção, envolta em psicadelismo e nostalgia, é também a lembrança de um lugar verde desaparecido, símbolo de inocência e harmonia perdida com a natureza.

Três anos depois, em 1970, Joni Mitchell, de visita ao Havai, viu o verde transformar-se em cimento. Dali nasceu Big Yellow Taxi. Escreveu-a numa noite quente, incomodada com a visão de um estacionamento onde antes havia um pomar.

They paved paradise and put up a parking lot”, canta ela, e a frase tornou-se num dos mais duradouros avisos ecológicos da música moderna. Poucos sabiam então que o Dia da Terra acabara de ser criado e que a palavra ecologia entrava pela primeira vez no vocabulário da cultura popular. 

No ano seguinte, 1971, Brian Wilson e Jack Rieley deram voz a uma árvore. Em A Day in the Life of a Tree, os Beach Boys deixaram o surf e os amores de verão para compor a elegia de uma árvore doente, sufocada pela poluição. O tema integrou o álbum Surf’s Up, o mais melancólico da banda. A canção ergue-se como oração e lamento, antecipando florestas queimadas, ar irrespirável e a tristeza das árvores que já não florescem.

Ainda em 1971, Marvin Gaye pressentiu o desastre com Mercy Mercy Me (The Ecology), o lamento de um visionário. “Oil wasted on the oceans and upon our seas, fish full of mercury.” O artista leu relatórios científicos sobre poluição e traduziu-os em música.

O tema chegou ao quarto lugar da Billboard e foi reconhecido pela Smithsonian Magazine como um dos primeiros apelos ecológicos do mainstream. É a prova de que a arte popular pode traduzir a ciência em emoção.

Em 1978, os Rush imaginaram um bosque onde carvalhos e bordos discutem entre si. The Trees parece, à primeira vista, uma alegoria social, mas fala do desequilíbrio e da arrogância humana que tenta nivelar a natureza ao seu modo. A metáfora de Neil Peart transformou-se num espelho moral e ecológico: quando forçamos a natureza à igualdade, o resultado é mutilação.

Em 1987, os U2 transformaram o deserto norte-americano em metáfora. The Joshua Tree, lançado nesse ano, tomou o nome da árvore do deserto (Yucca brevifolia), que sobrevive nas condições mais áridas, símbolo de resistência e fé. As fotografias de Anton Corbijn mostravam a banda entre planícies vazias e árvores solitárias, um manifesto visual sobre a solidão do planeta e a fragilidade da vida.

Nesse mesmo ano, a canção One Tree Hill entrou no álbum em homenagem ao amigo Greg Carroll e à colina de Auckland onde cresce uma árvore sagrada. A letra fala de perda e transcendência, mas também da ligação espiritual à Terra e ao ciclo natural da existência. O disco inteiro, embora político, respira uma reverência silenciosa à paisagem, lembrando que o ambiente é também parte da identidade humana.

Em 1993, o britânico Jay Kay, líder dos Jamiroquai, lançou Emergency on Planet Earth. A faixa mistura funk e acid jazz com consciência política. “Can’t you see this is the land of confusion, there’s no room for pollution”, canta ele, num tempo em que a Amazónia ardia e o consumismo se tornava religião. O álbum atingiu o primeiro lugar nas tabelas britânicas. Era o aviso de uma geração que percebia que a festa tecnológica tinha custos para o planeta.

Dois anos depois, em 1995, Thom Yorke escreveu Fake Plastic Trees após assistir a um concerto de Jeff Buckley. Com os Radiohead no estúdio, o impacto emocional levou-o a gravar a voz em três tomadas, quase em lágrimas. A canção fala de um mundo artificial, de árvores falsas e sentimentos de plástico, uma crítica poética ao consumismo e à substituição do natural pelo fabricado.

Nesse mesmo ano, Michael Jackson lançou Earth Song, um dos últimos grandes hinos ambientais do século XX. Nela, o artista ergue a voz por florestas, animais e oceanos.

What about sunrise, what about rain”, pergunta ele, numa sequência de imagens bíblicas e proféticas. O vídeo mostra terra devastada, rios secos e árvores tombadas. A canção liderou as tabelas de vendas na Europa e deu ao planeta uma súplica com alcance global. 

Quando o novo milénio começou, poucos artistas conseguiram manter a natureza no centro das atenções. Mas em 2002, os Red Hot Chili Peppers lançaram The Zephyr Song

Zephyr é a brisa suave do oeste, símbolo da leveza e da harmonia natural. Anthony Kiedis disse que quis escrever sobre a energia invisível que nos liga a tudo o que é vivo. A canção, acompanhada por um vídeo de flores em espiral, fala do vento como ponte entre o humano e o natural. Mesmo sem protesto direto, é uma celebração da fluidez do mundo vivo. 

Estas dez canções formam uma espécie de herbanário sonoro, uma coleção de folhas de música onde se inscrevem as vozes das árvores, dos ventos e dos rios. Foram compostas entre 1967 e 2002, quando a canção popular ainda era veículo de consciência.

A indústria mudou desde então, evoluiu para o imediatismo das plataformas, a estética do instante, o consumo rápido. A mensagem ecológica, que exigia tempo e escuta, foi perdendo espaço.

Mesmo assim, estas canções permanecem como raízes de uma memória comum. São lembrança de um tempo em que a arte ousava ser consciência e não apenas entretenimento. Quando o ouvinte cantarola “They paved paradise and put up a parking lot”, talvez não pense em pesticidas, mas a semente da ideia ficou. E essa semente, como todas as sementes, espera o momento certo para germinar.

Sinto-me parte de uma geração afortunada, testemunha de músicos que deram ao mundo alguns dos maiores hinos da humanidade. Fui contemporâneo de uma época em que a música tinha alma e coragem, em que os acordes tinham peso e os versos eram capazes de mover consciências.

Ouvíamos discos que nos faziam pensar, letras que nos faziam olhar o planeta com outra atenção. Hoje, o brilho da indústria é outro. Cede espaço a valores passageiros, a ruídos efémeros, a canções que se consomem antes de amadurecer.

A capacidade que os músicos, sobretudo os do grande palco, têm de compor hinos que evoquem a proteção da Terra e da natureza parece diminuir a cada ano. Mas talvez esta seja apenas uma travessia. Aos que escutam distraídos, aos melómanos menos atentos às letras e às histórias que as inspiraram, deixo estas dez canções, num texto que pode musicar! 

Procure-as. Leia as suas letras. Deixe-se surpreender pelo que nelas se esconde. São orações verdes, sopros de esperança que atravessaram décadas. Que estas vozes antigas nos recordem que a arte ainda pode regenerar-se, como a própria Terra depois da tempestade. 

Talvez o verdadeiro poder da música esteja em nos lembrar de quem somos quando tudo à nossa volta parece esquecer-se. Que cada canção que fala da Terra nos devolva o sentido de pertença, o silêncio que precede a criação, a responsabilidade de cuidar do que respira connosco.

Não se trata apenas de proteger o planeta, mas de reconhecer que fazemos parte dele, que somos o seu reflexo e o seu eco. Que a arte volte a ser semente de consciência, e que dessa escuta profunda renasça uma nova forma de viver, mais humana, mais verdadeira.
 

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Biocentrismo: o tempo da reverência pela vida

Biocentrismo é o nome que damos ao renascer de uma consciência antiga, a consciência de que a vida, em todas as suas formas, é o verdadeiro centro do mundo. Não nasce de uma teoria distante, mas de uma experiência de pertença profunda, a perceção de que respiramos, crescemos e morremos dentro da mesma teia que nos antecede e nos sustenta.

Mais do que uma corrente filosófica ou uma tendência académica, o biocentrismo é uma transformação silenciosa do olhar. Convida-nos a restituir à vida o seu lugar essencial, onde cada ser é reconhecido como parte insubstituível da mesma respiração que mantém o planeta em equilíbrio.

Durante séculos, o pensamento ocidental colocou o ser humano no topo de uma pirâmide imaginária, medindo o valor de todas as coisas pela sua utilidade. Chamou a isso progresso, civilização, desenvolvimento.

O biocentrismo surge como resposta serena a esta ilusão e recorda-nos que cada ser, do musgo à baleia, possui um valor intrínseco que não depende de nós. Somos parte de um mesmo corpo planetário, uma rede de interdependências onde tudo respira em conjunto. 

Distingue-se do antropocentrismo, que reduz a Terra a recurso e cenário, vendo na Natureza apenas um meio ao serviço humano. O biocentrismo, pelo contrário, reconhece nela uma comunidade viva onde todas as formas de existência têm valor próprio e partilham o mesmo direito de permanecer. 

Diferencia-se também do ecocentrismo, que valoriza os ecossistemas e processos naturais como totalidades com valor próprio, sem reduzir a Natureza a mecanismo ou equilíbrio matemático.

O biocentrismo ultrapassa a visão mecanicista do mundo e devolve à vida a sua dimensão plena. Afirma que todos os seres merecem consideração moral e que a vida não se resume a fluxos ou funções, mas à interligação sensível que sustenta o planeta. 

É uma ética que orienta a ação, uma ontologia que redefine o ser e uma pedagogia que ensina a pertença, colocando o ser humano no interior da teia da vida, onde sempre esteve.

As ciências contemporâneas começam a ecoar esta visão. A Avaliação sobre os Valores da Natureza do Intergovernmental Science Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services (IPBES), aprovada por representantes de 139 Estados Membros em julho de 2022, reconhece três tipos de valor que orientam hoje as políticas ambientais: o instrumental, o intrínseco e o relacional, conforme descrito no relatório oficial Methodological Assessment of the Diverse Values and Valuation of Nature.

O primeiro mede a utilidade, o segundo reconhece o valor da Natureza por si mesma, independentemente de qualquer apreciação humana, e o terceiro exprime a ligação afetiva, identitária e cultural entre os seres.

O biocentrismo encontra neste terceiro território o seu eco mais profundo, o lugar do vínculo e da pertença. É aqui que a vida deixa de ser algo a observar e volta a ser algo a viver, num gesto de reciprocidade com tudo o que existe. 

No campo da filosofia ambiental, o biocentrismo ganhou forma com o pensamento de Paul W. Taylor e Arne Naess, inspirados por uma tradição ética que remonta a Aldo Leopold. 

Taylor desenvolveu uma teoria em que todos os seres vivos possuem valor inerente e são compreendidos como centros de vida orientados para o seu próprio bem. Defendeu que o ser humano não tem um estatuto moral superior e que a ética deve assentar no respeito pela totalidade da vida.

Naess, filósofo norueguês e fundador da ecologia profunda, partilhou o mesmo impulso e ampliou-o ao domínio dos ecossistemas. Afirmou que todas as formas de existência têm valor em si mesmas e que a humanidade é apenas uma das muitas expressões da vida no planeta, unida às restantes por laços de interdependência e igualdade ecológica.

Muito antes deles, Leopold já intuía essa pertença comum. A sua ética da Terra via o ser humano como membro e cidadão da comunidade biótica e não como seu senhor. Acreditava que a verdadeira moral começa quando se reconhece que o solo, a água, as plantas e os animais fazem parte da mesma comunidade que nos sustenta.

Reunidos, estes pensadores deram ao biocentrismo o seu fundamento moderno, uma visão do mundo que ultrapassa a utilidade e restitui à vida a dignidade serena do seu próprio valor.

Ao longo do tempo, o biocentrismo abriu-se a novas vozes e territórios de pensamento. Hoje, filósofos e investigadores integram saberes indígenas, cosmologias não ocidentais e formas de conhecimento relacional que consideram a Terra como agente ou sujeito no sistema vivo. O biocentrismo contemporâneo é, por isso, plural e intercultural, um ponto de encontro entre a razão e a experiência vivida, entre o 
pensamento científico e o conhecimento ancestral.

A investigação em ética interespécies e ética planetária amplia esta perspetiva aos domínios da saúde, da educação e da governação. Nas ciências médicas, cresce o reconhecimento de que a saúde humana depende da saúde dos ecossistemas, e de que a vida floresce apenas quando o equilíbrio entre espécies é preservado.

A noção de Planetary Health propõe que os hospitais e as políticas de saúde passem a cuidar também do ambiente que sustenta a vida. Na educação despontam programas que ensinam com o corpo e com os sentidos, integrando trilhos, jardins e hortas como verdadeiros laboratórios de conhecimento. O saber deixa de ser apenas conceptual e torna-se vivido, enraizado no mundo real.

Para os municípios, o biocentrismo é uma oportunidade de reformular a gestão do território. Uma autarquia biocêntrica não se limita a cumprir metas de reflorestação ou a instalar painéis solares. Procura restaurar as relações que sustentam o lugar. Planeia corredores ecológicos, protege cursos de água, renaturaliza margens e devolve o direito de passagem aos rios e aos ventos.

Considera os solos como património e os insetos como aliados. As decisões são avaliadas não apenas pelo custo económico, mas pela contribuição para a integridade ecológica, para a continuidade das espécies e para o bem-estar das comunidades humanas e não humanas.

Para as empresas, o biocentrismo propõe uma ética de interdependência. Muda o centro de gravidade das métricas e indicadores. Não basta medir emissões ou balanços de carbono. É necessário medir vitalidade, a presença de polinizadores, a fertilidade dos solos, o retorno da água limpa e o aumento da complexidade biológica nas paisagens produtivas, de acordo com o contexto ecológico e com os requisitos legais em
vigor.

É esta complexidade que garante resiliência e futuro. Uma empresa biocêntrica entende que a sustentabilidade não é um departamento, é um modo de estar. O lucro perde o carácter de fim absoluto e transforma-se em meio para sustentar a regeneração.

As instituições públicas e privadas encontram aqui um caminho para alinhar as suas políticas com os novos marcos internacionais.

O Quadro Global da Biodiversidade de Kunming-Montreal, adotado em dezembro de 2022 pela Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica, estabelece metas concretas até 2030 para restaurar pelo menos 30 % dos ecossistemas degradados terrestres, de águas interiores, costeiros e marinhos, e para mobilizar 200 mil milhões de dólares por ano em financiamento para a biodiversidade.

O Regulamento (UE) 2024/1991 relativo ao Restauro da Natureza, aprovado em 24 de junho de 2024, estabelece metas juridicamente vinculativas para restaurar pelo menos 20 % das áreas terrestres e marinhas da União Europeia até 2030, bem como todos os ecossistemas degradados que necessitem de restauro até 2050.

Estes instrumentos podem ser interpretados como a tradução jurídica da intuição biocêntrica, a de que cuidar da Terra é cuidar de nós próprios.

Para cada um de nós, enquanto consumidores e habitantes, o biocentrismo é um exercício diário de escolha consciente. Comprar, comer, viajar, habitar, todos são atos ecológicos. A cada gesto escolhemos entre reforçar a rede da vida ou desgastá-la.

Quando optamos por alimentos cultivados com respeito pelos ciclos naturais, quando evitamos o desperdício, quando valorizamos produtos locais e práticas regenerativas, estamos a praticar biocentrismo em silêncio. Ele manifesta-se em cada cuidado, em cada atenção, em cada relação restaurada com o mundo natural.

Mas o biocentrismo não se esgota em políticas nem em mercados. É também uma experiência espiritual no sentido mais amplo da palavra. Implica reencontrar a humildade perdida. Saber que o nosso conhecimento, por mais vasto, é apenas um murmúrio entre muitos.

Aprender a escutar as vozes do vento, das aves e da água subterrânea. Redescobrir o prazer de observar um solo fértil, compreender o pulso das marés e sentir gratidão pelo ar que nos sustenta. Esta consciência é ciência e é poesia, é ética e é emoção, uma forma de conhecimento que une o sentir ao pensar e devolve à vida a dignidade do espanto.


Assim, o biocentrismo torna-se uma ponte entre mundos. Entre o pensamento e a ação, entre o humano e o mais-que-humano, entre o visível e o invisível. É um convite a reescrever a nossa presença na Terra com mais leveza, mais respeito e mais verdade.

No fim, o que propõe é simples, que deixemos de perguntar o que a Natureza pode fazer por nós e comecemos a perguntar o que podemos fazer nós pela continuidade da vida. Tudo o resto, economia, política, ciência, virá por acréscimo, como fruto natural de uma ética que reconhece, em cada ser e em cada batimento da vida, o centro sagrado do mundo.
 

 

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Como fazer picles & vegetais fermentados - Workshop presencial

Workshop Presencial com @mariacrames

Como fazer picles & vegetais fermentados

Os picles e vegetais fermentados são um verdadeiro presente para a nossa saúde intestinal, mas apesar de comuns noutras cozinhas do mundo, ainda são pouco usados na gastronomia portuguesa.

Neste workshop teórico com degustação incluída, vai aprender tudo o que precisa para dominar esta técnica ancestral e integrá-la na sua alimentação de forma simples, segura e deliciosa.

👉 O que vai aprender:
 
✨ Os benefícios para a saúde e o impacto positivo no intestino.
🥕 Como preparar picles e fermentados passo a passo, com receitas práticas e eficazes.
🧂 A importância da preparação e do conhecimento técnico para garantir resultados consistentes e saborosos.

📅 22 de novembro | ⏰ 15h00 – 17h00
📍 1000 Paladares – Rua do Campo Alegre, n.º 624, Porto
💶 35 € (degustação incluída)
📩 Inscrições: maria@negrilho.pt

Venha descobrir como os picles e vegetais fermentados podem transformar a sua saúde e trazer mais sabor e vitalidade ao seu dia a dia! 🌿

#fermentados #picles #saudeintestinal #probióticos #prebioticos
 

 

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O corpo da Terra, a terra do Corpo

Há um continente inteiro de seres vivos a pulsar dentro de nós. Uma vasta geografia de pequenas presenças que desenham mapas invisíveis no intestino, na pele, nas mucosas. Chamamos a este território microbioma.

Tal como cá fora, onde a humanidade muda rios de curso e derruba florestas, também por dentro vamos talhando o relevo com pressa e descuido. A globalização levou aos pratos a mesma paleta de sabores repetidos, embalou o trigo, o milho, o açúcar, e empurrou para longe os grãos antigos, as raízes fibrosas, os fermentos pacientes. 

O resultado é um mundo interior mais pobre, mais uniforme, associado a estilos de vida urbanizados e dietas pobres em fibra, com margens lisas onde antes havia enseadas de diversidade. 

A perda de biodiversidade no planeta começa assim. Um corte aqui, uma estrada além, um campo inteiro que se rende a uma única espécie. O canto das aves apaga-se pouco a pouco, os rios perdem os peixes e as larvas, os solos cansam, e tudo passa a depender de adubos que prometem abundância, mas cobram o preço da vitalidade. 

Dentro de nós ecoa a mesma transformação. As espécies microbianas que coevoluíram com fibras e raízes diversas cedem espaço às que prosperam em açúcares fáceis e alimentos sem tempo, reflexo das dietas apressadas que inventámos. 

Fármacos necessários, mas usados sem cuidado, alisam as colónias como pesticidas em lavoura extensa. A exposição repetida a estas substâncias reduz a diversidade microbiana e favorece a resistência, variando conforme a classe e o tempo de uso. A nossa paisagem íntima transforma-se numa monocultura resistente, mas frágil. Parece estável até que um vento novo a tome de surpresa. 

Ambos os mundos têm saudades do mesmo princípio simples. Diversidade é memória. É redundância sábia. É o conjunto de vozes que se respondem e protegem umas às outras quando chega a tempestade. Uma floresta com muitas espécies resiste melhor ao fogo e volta a verdejar. Uma diversidade funcional assegura resiliência, tanto nos ecossistemas naturais como no microbioma humano. 

Um microbioma variado amortece inflamações, ensina o sistema imunitário a reconhecer o que importa e a deixar passar o que deve viver. O planeta precisa de corredores ecológicos para restaurar o que foi separado. O nosso corpo pede corredores de fibra para restaurar fermentadores esquecidos. 

A terra necessita de repouso, rotação de culturas, humidade guardada. Nós precisamos de tempo à mesa, de alimentos vivos, de fermentações lentas que devolvem língua e abrigo aos micróbios amigos. 

Restauro ecológico é uma arte de paciência. Não se planta uma floresta em linha reta. Escutam-se os solos, leem-se as águas, mapeiam-se as sombras, e só então se escolhem as espécies que vão juntas. O restauro do microbioma reflete a mesma lógica de equilíbrio e tempo que sustenta o renascer dos ecossistemas.

Começa por retirar o ruído onde for possível, reduzir a agressão desnecessária, abrir espaço para que o corpo reconheça. Depois semeiam-se hábitos que alimentam as minúsculas vidas que habitam em nós. Leguminosas, frutos, verduras que ainda cheiram à terra. Cereais integrais que pedem mastigação e tempo. Águas que lembram rios, não refrigerantes. 

E de vez em quando, como quem reintroduz um lince numa serra, trazem-se culturas vivas, como iogurte, kefir, chucrute, kimchi, kombuchas, que podem aumentar a diversidade e modular a inflamação, e pães de massa-mãe, que devolvem textura ao chão intestinal.

Também é preciso justiça. Cá fora, a conservação falha quando a comunidade humana é esquecida. Não há parque natural que dure se os vizinhos passam fome. Dentro de nós a diversidade empobrece quando o equilíbrio se perde.

Não há microbioma que floresça se a vida quotidiana nos empurra para a conveniência permanente, para o consumo frequente de alimentos ultraprocessados, associados a inflamação e menor diversidade microbiana, para o sono curto, para o sedentarismo. 

A saúde do ecossistema humano pede cidades que deem passos, mercados que ofereçam alimento real, tempos que devolvam horas à cozinha e ao convívio. Pede políticas que protejam tanto a abelha no pomar como a bactéria que conversa com o nosso intestino.

Depois de tanta pressa, é o retorno que nos salva. O planeta não nos exige penitências grandiosas todos os dias. Pede antes escolhas que se repitam e criem trilhos. Plantar uma árvore certa no lugar certo. Deixar uma margem de campo para flores livres. Beber água como quem regressa à nascente.

Encher o prato de cores que pertencem à terra e não à indústria do disfarce. Tudo o que reconecta a vida lá fora sustenta a vida cá dentro. Tudo o que restaura a diversidade do planeta restaura o sentido do nosso próprio corpo.

A globalização ensinou-nos a viajar velozmente. Talvez agora nos caiba aprender a regressar com delicadeza. A refazer a casa comum que liga o corpo ao planeta. A cuidar das florestas e do intestino como partes do mesmo fôlego.

Com diversidade, com tempo, com cuidado. Que o corpo e a terra respirem juntos. É dessa harmonia que depende o nosso futuro.
 

 

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