Herbanário sonoro da Humanidade
Há músicas que atravessam o tempo como sementes levadas pelo vento. Germinam devagar, mesmo quando quem as ouve não percebe de imediato que nelas se fala do planeta que habitamos. Em cada verso há um alerta, um murmúrio de árvores, mares e flores disfarçado sob a melodia.
Em 1967, John Lennon regressou às memórias da infância em Liverpool para escrever Strawberry Fields Forever. O campo de morangos do Exército de Salvação era um abrigo entre árvores e risos, um refúgio onde o tempo parecia suspenso. A canção, envolta em psicadelismo e nostalgia, é também a lembrança de um lugar verde desaparecido, símbolo de inocência e harmonia perdida com a natureza.
Três anos depois, em 1970, Joni Mitchell, de visita ao Havai, viu o verde transformar-se em cimento. Dali nasceu Big Yellow Taxi. Escreveu-a numa noite quente, incomodada com a visão de um estacionamento onde antes havia um pomar.
“They paved paradise and put up a parking lot”, canta ela, e a frase tornou-se num dos mais duradouros avisos ecológicos da música moderna. Poucos sabiam então que o Dia da Terra acabara de ser criado e que a palavra ecologia entrava pela primeira vez no vocabulário da cultura popular.
No ano seguinte, 1971, Brian Wilson e Jack Rieley deram voz a uma árvore. Em A Day in the Life of a Tree, os Beach Boys deixaram o surf e os amores de verão para compor a elegia de uma árvore doente, sufocada pela poluição. O tema integrou o álbum Surf’s Up, o mais melancólico da banda. A canção ergue-se como oração e lamento, antecipando florestas queimadas, ar irrespirável e a tristeza das árvores que já não florescem.
Ainda em 1971, Marvin Gaye pressentiu o desastre com Mercy Mercy Me (The Ecology), o lamento de um visionário. “Oil wasted on the oceans and upon our seas, fish full of mercury.” O artista leu relatórios científicos sobre poluição e traduziu-os em música.
O tema chegou ao quarto lugar da Billboard e foi reconhecido pela Smithsonian Magazine como um dos primeiros apelos ecológicos do mainstream. É a prova de que a arte popular pode traduzir a ciência em emoção.
Em 1978, os Rush imaginaram um bosque onde carvalhos e bordos discutem entre si. The Trees parece, à primeira vista, uma alegoria social, mas fala do desequilíbrio e da arrogância humana que tenta nivelar a natureza ao seu modo. A metáfora de Neil Peart transformou-se num espelho moral e ecológico: quando forçamos a natureza à igualdade, o resultado é mutilação.
Em 1987, os U2 transformaram o deserto norte-americano em metáfora. The Joshua Tree, lançado nesse ano, tomou o nome da árvore do deserto (Yucca brevifolia), que sobrevive nas condições mais áridas, símbolo de resistência e fé. As fotografias de Anton Corbijn mostravam a banda entre planícies vazias e árvores solitárias, um manifesto visual sobre a solidão do planeta e a fragilidade da vida.
Nesse mesmo ano, a canção One Tree Hill entrou no álbum em homenagem ao amigo Greg Carroll e à colina de Auckland onde cresce uma árvore sagrada. A letra fala de perda e transcendência, mas também da ligação espiritual à Terra e ao ciclo natural da existência. O disco inteiro, embora político, respira uma reverência silenciosa à paisagem, lembrando que o ambiente é também parte da identidade humana.
Em 1993, o britânico Jay Kay, líder dos Jamiroquai, lançou Emergency on Planet Earth. A faixa mistura funk e acid jazz com consciência política. “Can’t you see this is the land of confusion, there’s no room for pollution”, canta ele, num tempo em que a Amazónia ardia e o consumismo se tornava religião. O álbum atingiu o primeiro lugar nas tabelas britânicas. Era o aviso de uma geração que percebia que a festa tecnológica tinha custos para o planeta.
Dois anos depois, em 1995, Thom Yorke escreveu Fake Plastic Trees após assistir a um concerto de Jeff Buckley. Com os Radiohead no estúdio, o impacto emocional levou-o a gravar a voz em três tomadas, quase em lágrimas. A canção fala de um mundo artificial, de árvores falsas e sentimentos de plástico, uma crítica poética ao consumismo e à substituição do natural pelo fabricado.
Nesse mesmo ano, Michael Jackson lançou Earth Song, um dos últimos grandes hinos ambientais do século XX. Nela, o artista ergue a voz por florestas, animais e oceanos.
“What about sunrise, what about rain”, pergunta ele, numa sequência de imagens bíblicas e proféticas. O vídeo mostra terra devastada, rios secos e árvores tombadas. A canção liderou as tabelas de vendas na Europa e deu ao planeta uma súplica com alcance global.
Quando o novo milénio começou, poucos artistas conseguiram manter a natureza no centro das atenções. Mas em 2002, os Red Hot Chili Peppers lançaram The Zephyr Song.
Zephyr é a brisa suave do oeste, símbolo da leveza e da harmonia natural. Anthony Kiedis disse que quis escrever sobre a energia invisível que nos liga a tudo o que é vivo. A canção, acompanhada por um vídeo de flores em espiral, fala do vento como ponte entre o humano e o natural. Mesmo sem protesto direto, é uma celebração da fluidez do mundo vivo.
Estas dez canções formam uma espécie de herbanário sonoro, uma coleção de folhas de música onde se inscrevem as vozes das árvores, dos ventos e dos rios. Foram compostas entre 1967 e 2002, quando a canção popular ainda era veículo de consciência.
A indústria mudou desde então, evoluiu para o imediatismo das plataformas, a estética do instante, o consumo rápido. A mensagem ecológica, que exigia tempo e escuta, foi perdendo espaço.
Mesmo assim, estas canções permanecem como raízes de uma memória comum. São lembrança de um tempo em que a arte ousava ser consciência e não apenas entretenimento. Quando o ouvinte cantarola “They paved paradise and put up a parking lot”, talvez não pense em pesticidas, mas a semente da ideia ficou. E essa semente, como todas as sementes, espera o momento certo para germinar.
Sinto-me parte de uma geração afortunada, testemunha de músicos que deram ao mundo alguns dos maiores hinos da humanidade. Fui contemporâneo de uma época em que a música tinha alma e coragem, em que os acordes tinham peso e os versos eram capazes de mover consciências.
Ouvíamos discos que nos faziam pensar, letras que nos faziam olhar o planeta com outra atenção. Hoje, o brilho da indústria é outro. Cede espaço a valores passageiros, a ruídos efémeros, a canções que se consomem antes de amadurecer.
A capacidade que os músicos, sobretudo os do grande palco, têm de compor hinos que evoquem a proteção da Terra e da natureza parece diminuir a cada ano. Mas talvez esta seja apenas uma travessia. Aos que escutam distraídos, aos melómanos menos atentos às letras e às histórias que as inspiraram, deixo estas dez canções, num texto que pode musicar!
Procure-as. Leia as suas letras. Deixe-se surpreender pelo que nelas se esconde. São orações verdes, sopros de esperança que atravessaram décadas. Que estas vozes antigas nos recordem que a arte ainda pode regenerar-se, como a própria Terra depois da tempestade.
Talvez o verdadeiro poder da música esteja em nos lembrar de quem somos quando tudo à nossa volta parece esquecer-se. Que cada canção que fala da Terra nos devolva o sentido de pertença, o silêncio que precede a criação, a responsabilidade de cuidar do que respira connosco.
Não se trata apenas de proteger o planeta, mas de reconhecer que fazemos parte dele, que somos o seu reflexo e o seu eco. Que a arte volte a ser semente de consciência, e que dessa escuta profunda renasça uma nova forma de viver, mais humana, mais verdadeira.
Em 1967, John Lennon regressou às memórias da infância em Liverpool para escrever Strawberry Fields Forever. O campo de morangos do Exército de Salvação era um abrigo entre árvores e risos, um refúgio onde o tempo parecia suspenso. A canção, envolta em psicadelismo e nostalgia, é também a lembrança de um lugar verde desaparecido, símbolo de inocência e harmonia perdida com a natureza.
Três anos depois, em 1970, Joni Mitchell, de visita ao Havai, viu o verde transformar-se em cimento. Dali nasceu Big Yellow Taxi. Escreveu-a numa noite quente, incomodada com a visão de um estacionamento onde antes havia um pomar.
“They paved paradise and put up a parking lot”, canta ela, e a frase tornou-se num dos mais duradouros avisos ecológicos da música moderna. Poucos sabiam então que o Dia da Terra acabara de ser criado e que a palavra ecologia entrava pela primeira vez no vocabulário da cultura popular.
No ano seguinte, 1971, Brian Wilson e Jack Rieley deram voz a uma árvore. Em A Day in the Life of a Tree, os Beach Boys deixaram o surf e os amores de verão para compor a elegia de uma árvore doente, sufocada pela poluição. O tema integrou o álbum Surf’s Up, o mais melancólico da banda. A canção ergue-se como oração e lamento, antecipando florestas queimadas, ar irrespirável e a tristeza das árvores que já não florescem.
Ainda em 1971, Marvin Gaye pressentiu o desastre com Mercy Mercy Me (The Ecology), o lamento de um visionário. “Oil wasted on the oceans and upon our seas, fish full of mercury.” O artista leu relatórios científicos sobre poluição e traduziu-os em música.
O tema chegou ao quarto lugar da Billboard e foi reconhecido pela Smithsonian Magazine como um dos primeiros apelos ecológicos do mainstream. É a prova de que a arte popular pode traduzir a ciência em emoção.
Em 1978, os Rush imaginaram um bosque onde carvalhos e bordos discutem entre si. The Trees parece, à primeira vista, uma alegoria social, mas fala do desequilíbrio e da arrogância humana que tenta nivelar a natureza ao seu modo. A metáfora de Neil Peart transformou-se num espelho moral e ecológico: quando forçamos a natureza à igualdade, o resultado é mutilação.
Em 1987, os U2 transformaram o deserto norte-americano em metáfora. The Joshua Tree, lançado nesse ano, tomou o nome da árvore do deserto (Yucca brevifolia), que sobrevive nas condições mais áridas, símbolo de resistência e fé. As fotografias de Anton Corbijn mostravam a banda entre planícies vazias e árvores solitárias, um manifesto visual sobre a solidão do planeta e a fragilidade da vida.
Nesse mesmo ano, a canção One Tree Hill entrou no álbum em homenagem ao amigo Greg Carroll e à colina de Auckland onde cresce uma árvore sagrada. A letra fala de perda e transcendência, mas também da ligação espiritual à Terra e ao ciclo natural da existência. O disco inteiro, embora político, respira uma reverência silenciosa à paisagem, lembrando que o ambiente é também parte da identidade humana.
Em 1993, o britânico Jay Kay, líder dos Jamiroquai, lançou Emergency on Planet Earth. A faixa mistura funk e acid jazz com consciência política. “Can’t you see this is the land of confusion, there’s no room for pollution”, canta ele, num tempo em que a Amazónia ardia e o consumismo se tornava religião. O álbum atingiu o primeiro lugar nas tabelas britânicas. Era o aviso de uma geração que percebia que a festa tecnológica tinha custos para o planeta.
Dois anos depois, em 1995, Thom Yorke escreveu Fake Plastic Trees após assistir a um concerto de Jeff Buckley. Com os Radiohead no estúdio, o impacto emocional levou-o a gravar a voz em três tomadas, quase em lágrimas. A canção fala de um mundo artificial, de árvores falsas e sentimentos de plástico, uma crítica poética ao consumismo e à substituição do natural pelo fabricado.
Nesse mesmo ano, Michael Jackson lançou Earth Song, um dos últimos grandes hinos ambientais do século XX. Nela, o artista ergue a voz por florestas, animais e oceanos.
“What about sunrise, what about rain”, pergunta ele, numa sequência de imagens bíblicas e proféticas. O vídeo mostra terra devastada, rios secos e árvores tombadas. A canção liderou as tabelas de vendas na Europa e deu ao planeta uma súplica com alcance global.
Quando o novo milénio começou, poucos artistas conseguiram manter a natureza no centro das atenções. Mas em 2002, os Red Hot Chili Peppers lançaram The Zephyr Song.
Zephyr é a brisa suave do oeste, símbolo da leveza e da harmonia natural. Anthony Kiedis disse que quis escrever sobre a energia invisível que nos liga a tudo o que é vivo. A canção, acompanhada por um vídeo de flores em espiral, fala do vento como ponte entre o humano e o natural. Mesmo sem protesto direto, é uma celebração da fluidez do mundo vivo.
Estas dez canções formam uma espécie de herbanário sonoro, uma coleção de folhas de música onde se inscrevem as vozes das árvores, dos ventos e dos rios. Foram compostas entre 1967 e 2002, quando a canção popular ainda era veículo de consciência.
A indústria mudou desde então, evoluiu para o imediatismo das plataformas, a estética do instante, o consumo rápido. A mensagem ecológica, que exigia tempo e escuta, foi perdendo espaço.
Mesmo assim, estas canções permanecem como raízes de uma memória comum. São lembrança de um tempo em que a arte ousava ser consciência e não apenas entretenimento. Quando o ouvinte cantarola “They paved paradise and put up a parking lot”, talvez não pense em pesticidas, mas a semente da ideia ficou. E essa semente, como todas as sementes, espera o momento certo para germinar.
Sinto-me parte de uma geração afortunada, testemunha de músicos que deram ao mundo alguns dos maiores hinos da humanidade. Fui contemporâneo de uma época em que a música tinha alma e coragem, em que os acordes tinham peso e os versos eram capazes de mover consciências.
Ouvíamos discos que nos faziam pensar, letras que nos faziam olhar o planeta com outra atenção. Hoje, o brilho da indústria é outro. Cede espaço a valores passageiros, a ruídos efémeros, a canções que se consomem antes de amadurecer.
A capacidade que os músicos, sobretudo os do grande palco, têm de compor hinos que evoquem a proteção da Terra e da natureza parece diminuir a cada ano. Mas talvez esta seja apenas uma travessia. Aos que escutam distraídos, aos melómanos menos atentos às letras e às histórias que as inspiraram, deixo estas dez canções, num texto que pode musicar!
Procure-as. Leia as suas letras. Deixe-se surpreender pelo que nelas se esconde. São orações verdes, sopros de esperança que atravessaram décadas. Que estas vozes antigas nos recordem que a arte ainda pode regenerar-se, como a própria Terra depois da tempestade.
Talvez o verdadeiro poder da música esteja em nos lembrar de quem somos quando tudo à nossa volta parece esquecer-se. Que cada canção que fala da Terra nos devolva o sentido de pertença, o silêncio que precede a criação, a responsabilidade de cuidar do que respira connosco.
Não se trata apenas de proteger o planeta, mas de reconhecer que fazemos parte dele, que somos o seu reflexo e o seu eco. Que a arte volte a ser semente de consciência, e que dessa escuta profunda renasça uma nova forma de viver, mais humana, mais verdadeira.

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