Batata – o pão dos pobres, o mimo dos ricos

Adoro batatas. Podia estar um dia inteiro a falar sobre elas. Não me atrevo a escrever um tratado enquanto não conseguir provar algumas das dezenas de variedades mais interessantes, das milhares que existem, bem como visitar os seus países de berço, na América do sul.

Guardo memórias de infância, nos anos 80, quando as batatas eram vendidas em sacos de sarapilheira de 30 ou 50 kg, distribuídas em carrinhas de caixa aberta pelas ruas das cidades, tal era a sua importância em casa das famílias portuguesas. Hoje é comprada em sacos de 2-5 kg… ainda assim, os comedores de batata de hoje são cada vez mais como Van Gogh os retratou, em 1885.


Batatas produzidas em lugares longínquos, como Montalegre, porque ao contrário da sua congénere doce-tropical, a batata precisa de frio. E as daquela região de Trás-os-Montes ainda se encontravam livres de pragas como o escaravelho, que o frio de outros tempos não permitia a sua cruzada maligna contra a afirmação do tubérculo de ouro na região.

Por essa altura, todas as mães e avós que conheci cultivavam batata-doce mergulhada em água num copo de vidro, como planta ornamental! Depois chegaram os ‘millennial influencers’ e os medidores humanos de nutrientes e a batata voltou para os tempos de escuridão de onde a trouxemos para a nossa gastronomia, dando lugar à doce versão que, curiosamente, faz parte dos nossos hábitos de consumo há muito mais tempo do que a batata-comum.

A batata chegou a ter tanto poder no nosso país que também ficou conhecida por ter uma lógica própria, a lógica da batata portuguesa. Ainda hoje se exprime com muita frequência, um pouco por todo o lado… "Só engorda quem come demais" e milhares de outras máximas que enriquecem o nosso dia-a-dia, quais verdades de La Palice servidas com molho verde.

Nos dias de hoje, mandar alguém plantar batatas não ofende, pelo contrário, que ser agricultor é profissão digna e respeitável. Mas na segunda metade do século XIX, a agricultura não era motivo de orgulho e estava associada a trabalho braçal, para pessoas humildes e pouco inteligentes. Vá plantar batatas foi, durante muito tempo, uma espécie de insulto botânico, que visava desqualificar o próximo.

No último Natal já não fui a tempo de conseguir alguns quilos da variedade ‘Olho de Perdiz’ (Picasso), boa para acompanhar o bacalhau da consoada. Quando chegar a minha hora, talvez o meu último desejo sejam batatas cozidas, regadas com azeite, mas não umas batatas e azeite quaisquer… exijo saber o nome da variedade, que nisto do conhecimento das variedades, a batata ficou lá para trás. 

Quero uma batata produzida em Portugal, adequada para cozer, e cozida no tempo certo. Quero casá-la com um azeite, produzido de forma extensiva, em olivais transmontanos, ambos em modo de produção biológico. Se assim for, estou seguro de que, quando chegar a minha hora, partirei provando pela última vez uma das combinações mais perfeitas do Universo. 

Cozer batatas não é de agora, o uso do fogo para cozinhar vegetais como tubérculos foi decisivo para o desenvolvimento do homem, tanto física como socialmente. Além de serem rijos, alguns tubérculos são mesmo venenosos, se não forem cozinhados.

Ainda há pouco tempo metade dos restaurantes sofisticados nas grandes cidades portuguesas vulgarizaram servir a casca da batata frita, como entrada invulgar e a puxar ao sofisticado. Mas rapidamente esta moda sucumbiu a espumas, tinta de choco e outros que tal… Os pescadores da Afurada dizem que não se pode comer muitas batatas, porque dão sono… eu nunca adormeci à mesa por causa delas e se alguma vez acontecer, a culpa é do vinho…

NUNCA se deve dizer que se vai semear batatas… diz-se plantar, porque o que se utiliza na propagação da planta é parte de um tubérculo e não a semente propriamente dita. As sementes da batateira só interessam aos melhoradores. 

Dizer semear batatas é muito pior do que dizer vermelho em vez de encarnado, em certos meios… e seguramente muito pior do que dizer prendas em vez de presentes…

Se algum dia forem perseguidos por ‘nazis da gramática’, que vos corrigem constantemente por ofensas tais como dizer duzentas gramas ou com a presença ou ausência de acento circunflexo em certas palavras, têm que os pôr a falar de batatas! É seguro que vão falhar! Mal-entendidos da propagação Sexual vs Vegetativa!!!

Por outro lado, se um dia encontrarem quem vos diga que vai plantar ou plantou batatas, é caso para afirmar com enorme segurança e convicção, que têm perante vós uma das pessoas mais bem-educadas que alguma vez conheceram. Seguramente essa pessoa nunca abordará o lado mais brejeiro da batata, dando um segundo sentido às suas particularidades reprodutivas, como olho ou grelo.

 

Hoje comprar batatas atingiu níveis de indignidade históricos… voltámos ao tempo em que se compra um ser vivo como se ele fosse um objeto… é avaliado pela cor da pele, quando deveria ser livre, com nome próprio e respeitado, sobretudo pela sua composição em amido, que torna certas variedades mais adequadas para cozer, fritar ou assar.

A maioria conhece apenas o seu lado hortícola/gastronómico. Mas também são produzidas para indústria e como forrageiras. Quanto à cor da pele, podem ser amarelas, vermelhas, roxas, ou bicolores. Quanto à cor da polpa, podem ser brancas, amarelas, e em número diminuto, arroxeadas.

As variedades dividem-se em precoces (ex: Jaerla, Picasso, Cleopatra); semi-precoces (ex: Mozart, Spunta, Agria) e semi-tardias/tardias (ex: Asterix, Desirée, Kennebec). A variedade Ratte, ainda pouco produzida em Portugal, é uma das variedades mais notáveis que já provei. Tem um peculiar travo a noz e uma textura muito suave e é boa para cozer ou assar. A variedade Vitelotte é de um púrpura escuro, quase preto, excelente para fritar. Infelizmente rara no mercado português…

Perguntem a um cozinheiro ou no supermercado qual a variedade de batata que estão a comprar/consumir? Dificilmente conseguirão uma resposta. Nos vinhos, todos conhecem as castas, nas frutas muitas variedades são do domínio público, mas nas batatas não…

A batateira faz parte de uma fascinante família de reputados membros, as Solanáceas

Quase todos atingiram enorme fama mundial. Temos a prima beringela, solteira, vegetariana, conservadora e muito elegante.

O primo pimento passa a vida em banhos de sol, junto às mais diversas estâncias balneares, a acompanhar senhoras e cavalheiros que apreciam peixe (sobretudo nas brasas).

Os primos excêntricos do ramo das malaguetas competem entre si por quem arde mais na escala de Scoville, que varia de 0 a mais de 16 milhões! E a luta continua, renhida e a provocar lágrimas de dor, um pouco por todo o mundo!

O promíscuo do primo tomate, emigrante sul-americano que enriqueceu na Europa e América do Norte, que parte o coração a bois, partilha a cama com manjericão e alface, faz-se acompanhar das cebolas mais elegantes, gosta de ir ao queijo fresco, enquanto lubrifica tudo com azeite, embora ninguém o possa acusar de azeiteiro…

Nesta família existem ainda parentes menos conhecidos, perigosos e muito discretos, que não gostam de ser incomodados. A beladona (Atropa belladonna) produz uns atraentes frutos pretos e redondos, alucinogénicos e mortais. Chegou a cultivar-se em Portugal no século passado, para extração de atropina, substância que a medicina contemporânea utiliza amplamente para tratar quem foi exposto a gás dos nervos ou… pesticidas!!!

Os mais perigosos membros desta família, as Anágua-de-vénus (Brugmansia sp.) encontram-se entre as plantas mais alucinogénicas do Planeta (a coca é uma ‘menina’ ao pé destas senhoras). Muitas delas vivem num programa de proteção de testemunhas, nos jardins de metade das avós portuguesas! Ninguém sabe do que estas plantas são capazes… E ainda bem!

Os tubérculos da batateira não devem ficar expostos ao sol, quer durante o desenvolvimento da planta (uma das razões porque se faz a operação cultural amontoa), quer na colheita ou armazenamento. Os agricultores sabem que, quando expostos ao sol, os tubérculos ficam com uma cor esverdeada e não devem ser consumidos. Isso deve-se ao facto da planta produzir uma substância venenosa, a solanina, que pode mesmo provocar sérios problemas de saúde, se ingerida em grandes quantidades.

Há uns atrás, mantive uma rubrica na Antena 1, chamada "O Mundo das Plantas", em que durante 1 hora explorava esta fascinante temática. Decidi falar sobre plantas tóxicas, dei o exemplo da batateira e de seguida senti-me como Orson Welles se terá sentido quando em 1938 aterrorizou milhões de americanos com a sua emissão A Guerra dos Mundos, feita aos microfones da estação CBS!!! O telefone da rádio ficou entupido com chamadas de pessoas que diziam: "como batatas todas as semanas, será que vou morrer?!!".


A batateira (Solanum tuberosum) tem origem no Chile e Colômbia. Era cultivada pelos Incas e outros povos, muito antes de os navegadores espanhóis a terem trazido para a Europa. 

De início, não houve um interesse muito grande na sua introdução no velho continente. Só se conseguiu impor no século XIX. A principal razão está no facto de se acreditar que o seu consumo estava associado à lepra. Só depois das grandes fomes na Irlanda a batata se impôs como cultura de escala na Europa. 

As primeiras introduções tinham objetivos ornamentais ou científicos. Também pode ter sido influenciado pelos sistemas de agricultura seguidos na altura, que privilegiavam os cereais e os produtos secos, de mais fácil conservação. 

Foi Parmantier, um agrónomo-hortelão do século XVII que desempenhou um papel fundamental na sua disseminação em França e depois na Europa. Algumas histórias contam que terá convidado para um banquete altas personalidades francesas, servindo-lhes diversos pratos, exclusivamente preparados com batatas.

Outros contam que terá mandado plantar um campo nos arredores de Paris, colocando uma guarda de soldados a este campo. Os agricultores ficaram curiosos e perguntaram que cultura era aquela tão valiosa para ser guardada por soldados. Logo que chegaram à fase de ser colhidas, mandou retirar a guarda durante a noite para que fossem roubadas, graças ao desejo entretanto criado de experimentarem também esta cultura. No século XVIII ainda era pouco usada em Portugal.

Não confundir com batata-doce (Ipomoea batatas). Esta cultura já existia no Brasil aquando da chegada dos portugueses. Colombo trouxe-a e ofereceu-a a Isabel, a católica, como prova do achamento das Américas. Na 2ª metade do século XVI a sua cultura, ao contrário da batata-comum, já estava bastante divulgada em Portugal, Espanha e Itália. Os portugueses introduziram-na em África para alimentar os escravos, na Índia, na Indonésia, na China e no Japão. Hoje em dia é uma das culturas mais importantes da grande zona inter-tropical. Em África representam uma % elevada da alimentação. A China é o primeiro produtor mundial.

No momento está em curso uma tentativa de vulgarizar no nosso país o cultivo e consumo de tupinambo ou girassol-batateiro (Helianthus tuberosus), outra planta com origem na América do sul.

É frequente em agricultura convencional que um só produto agrícola seja produzido com um cocktail de vários pesticidas e reguladores de crescimento. Dou o exemplo da cultura da batateira, que é espantoso, com uma impressionante sequência de aplicação de pesticidas: herbicida de pré-emergência; herbicida de pós-emergência; fungicida (pode ser aplicado diversas vezes); insecticida (pode ser aplicado diversas vezes); Faz-se a colheita... mas os pesticidas ainda não acabaram... Falta ainda aplicar: Regulador de crescimento (para evitar o abrolhamento); Insecticida (para evitar a traça no armazenamento). Comer batatas produzidas em modo convencional pode ser uma experiência verdadeiramente assustadora!!!

Portugal produz anualmente 500 mil toneladas de batata e importa cerca de 300 mil toneladas. A média de produtividade por hectare varia consoante a região do país, entre os 25/40 toneladas/hectare. Internacionalmente, alguns agricultores conseguem produzir 100 toneladas por hectare. É uma das culturas mais generosas para a humanidade. É o pão dos pobres, o mimo dos ricos.

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