A última encosta do alho-dos-ursos

Há plantas que parecem guardar um segredo, como se a sua presença fosse apenas para os mais atentos. O alho-dos-ursos (Allium ursinum subsp. ursinum), com o seu aroma inconfundível, é uma dessas joias discretas.

Nas ravinas húmidas de Trás-os-Montes, sobre solos frescos e ricos em húmus, uma única encosta guarda esta população, como se fosse um relicário verde.

Ali, a cada primavera, as primeiras folhas largas e lanceoladas despontam como lâminas de jade, iluminando o chão sombrio. Logo se erguem hastes finas, coroadas por pequenas estrelas brancas, até que o bosque se cobre de um tapete de luz que rompe a penumbra.

Os ursos-pardos foram extintos em Portugal no século XIX. O último exemplar foi abatido em 1843 no Gerês. Hoje, uma planta outrora associada àquelas matas ancestrais ainda resiste: o alho-dos-ursos subsiste em Trás-os-Montes numa população extremamente reduzida, estimada em cerca de cem indivíduos maduros, concentrados numa única encosta da Serra da Nogueira, num território que mal chega aos 4 km².

Este refúgio é frágil: por ali passam javalis, que devoram plantas inteiras, e mãos humanas que cortam lenha e desmatam as margens sombrias. A destruição de habitat, seja pelo corte de vegetação ribeirinha, pela construção de barragens ou pela alteração do regime hídrico, agravou ainda mais a situação.

Acresce a recolha ilegal de plantas para consumo ou transplantação, que em populações tão pequenas pode ter efeitos devastadores. O isolamento geográfico e o número diminuto de exemplares tornam esta relíquia vulnerável ao acaso.

Uma seca prolongada, uma cheia ou um incêndio bastariam para apagar de vez esta presença milenar. Em breve poderão ter o mesmo destino dos ursos se não agirmos. Deixaremos que desapareçam silenciosamente das nossas serras?

A sua raridade em Portugal contrasta com a abundância que lhe reconhecem em muitos bosques da Europa Central e Setentrional. Na Alemanha, na Suíça ou em zonas da Polónia, o alho-dos-ursos forma manchas densas no sub-bosque que surgem como tapetes verdes no início da primavera, impregnando o ar com um aroma intenso, entre alho e terra húmida.

É tão vulgar que se encontra fresco no retalho e em mercados de vários países da Europa Central, como a Suíça, pronto para sopas, pestos e manteigas aromatizadas.

O nome popular tem um encanto mítico. Segundo a tradição europeia “alho-dos-ursos” evoca a tradição de que os ursos-pardos, ao saírem da hibernação, procuravam estas folhas tenras como um dos primeiros alimentos do ano, para purgar o organismo e recuperar forças. Mesmo que hoje já não haja ursos nas nossas serras, o nome ficou, lembrando-nos um tempo em que a floresta era mais densa e a fauna mais diversa.

Além do valor ecológico, o alho-dos-ursos é uma planta com virtudes terapêuticas descritas na fitoterapia europeia e suportadas por estudos científicos. As suas folhas e bolbos são ricos em compostos sulfurados com propriedades antimicrobianas, ligeiramente hipotensoras e benéficas para o sistema cardiovascular. Tal como o alho comum, é usado como tónico primaveril, ajudando a estimular a circulação e a purificar o sangue.

Noutros países, para além do uso culinário, é também cultivado como planta ornamental. Jardins botânicos e hortos florestais utilizam-no para recriar bosques naturais, apreciando o efeito de tapete verde que cobre o solo e a floração delicada que ilumina os canteiros sombrios no final do inverno.

O alho-dos-ursos é ainda um bioindicador de solos saudáveis, frescos e sombrios e, em vários países, é tomado como indicador de bosques antigos. Onde ele aparece, há equilíbrio hídrico, humidade e matéria orgânica, sinais de um ecossistema bem conservado.

Por isso, a sua presença é um sinal de esperança: mostra-nos que ainda existem refúgios onde a natureza funciona. Mas esta esperança é frágil. Sem proteção legal efetiva e sem controlo das pressões sobre o habitat, estas últimas manchas podem desaparecer em silêncio.

Preservar o alho-dos-ursos em Portugal é mais do que conservar uma planta rara. É manter viva a memória de um bosque europeu que, em larga escala, se estende do Atlântico aos Cárpatos. É garantir que as próximas gerações ainda possam ver, cheirar e provar esta erva de primavera, que há milhares de anos alimenta pessoas e animais.
 

 

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