O valor secreto da nossa flora
O paradoxo
Há plantas da nossa flora autóctone que sobrevivem à beira do abismo. Quase sempre discretas, agarram-se a ravinas, espreitam nas margens dos rios ou persistem no cimo de montanhas frias.
E, no entanto, basta atravessar fronteiras para as encontrarmos por todo o lado: em hortos e jardins, em parques urbanos, e até como invasoras difíceis de controlar.
A adelfeira (Rhododendron ponticum subsp. baeticum), também chamada loendro (não confundir com Nerium oleander), é um bom exemplo. Esta relíquia da Laurissilva continental tem a sua maior população na Serra do Caramulo, na Reserva Botânica de Cambarinho. Vive encurralada entre eucaliptais, como num anel combustível onde basta uma faísca para arder tudo e desaparecer para sempre. E, no Reino Unido, o congénere hibridado transformou-se numa das piores invasoras, cobrindo encostas inteiras sem pedir licença — a ponto de ser proibido por lei. Na minha opinião, esta espécie poderia ser uma estrela dos jardins portugueses, desde que em solos ácidos, que são o seu palco preferido.
O alho-dos-ursos (Allium ursinum), contado a escassas dezenas no Nordeste português, é abundante na Europa Central, onde cobre bosques inteiros. Em Trás-os-Montes, resiste numa única encosta com pouco mais de cem plantas; na Suíça ou na Alemanha é tão vulgar que se vende fresco nos mercados, ao lado das hortelãs e dos coentros, para sopas e pestos primaveris.
O buxo (Buxus sempervirens), reduzido a pequenas manchas nos vales do Douro, está cada vez mais ameaçado pela perda de habitat — barragens, alterações do uso do solo, incêndios — e, mais recentemente, pela praga asiática Cydalima perspectalis. Nos jardins formais da Europa, porém, continua a ser o rei da topiária, aparado em sebes geométricas que parecem esculturas vivas.
O pinheiro-baboso (Drosophyllum lusitanicum), ou erva-pinheira-orvalhada, é uma das nossas joias botânicas. Endemismo ibérico vulnerável, prefere solos pobres e secos, liberta perfume de mel e captura insetos em folhas pegajosas. Em Portugal, vivem menos de 2 500 indivíduos. Já na Austrália ou no Reino Unido é estrela de coleções privadas e públicas de plantas carnívoras, com sementes e plantas à venda na internet.
O noveleiro (Viburnum opulus), também conhecido como caneleiro, mal chega a mil indivíduos no Nordeste português. Os exemplares espontâneos não formam bolas de flores: as inflorescências são corimbos achatados, elegantes e subtis, ainda assim de grande beleza ornamental. Já os cultivares, com inflorescências esféricas, enfeitam jardins por todo o mundo.
O teixo, ou teixeira (Taxus baccata), sobrevive em ravinas sombrias do Gerês e da Estrela, com populações frágeis e envelhecidas. Noutras paragens, é plantado em cemitérios, jardins e parques, e venerado como árvore sagrada da Europa, capaz de viver mais de dois milénios.
O zimbro (Juniperus communis), discreto e raro em Portugal, restrito às altitudes frias, produz gálbulas usadas em todo o mundo para aromatizar gin. No hemisfério Norte é uma das coníferas mais comuns; por cá, é uma raridade.
O paradoxo é este: plantas ameaçadas em Portugal são comuns - ou até indesejadas - noutros países. Aqui, vivem no limite da sua distribuição, perderam habitat para barragens, fogos e monoculturas, sofrem com pragas invasoras e com um clima cada vez mais imprevisível. Lá fora, encontram condições favoráveis e quem delas cuide, multiplicando-se tanto em jardins como em projetos de restauro.
O problema invisível: a genética local
À primeira vista, a solução parece simples: se estão em risco, plantemos mais. Compremos em hortos, multipliquemos, enchamos os montes e os vales. Mas aqui está a armadilha: as plantas de horto não são iguais às selvagens.
São clones, cultivares, linhagens de proveniência incerta. Perderam diversidade genética, adaptaram-se a vasos e substratos artificiais. Quando cruzadas com as populações selvagens, podem diluir - ou até apagar - as adaptações locais, fruto de milhares de anos de evolução.
A genética local é, assim, um património biológico e cultural. É ela que garante resiliência, que dá às plantas capacidade de resistir a pragas, secas e incêndios. Perder essa genética é perder a memória viva da paisagem.
O que temos e o que falta
Portugal não parte do zero. O CENASEF, em Amarante, colhe e conserva sementes de árvores e arbustos florestais; o Banco Português de Germoplasma Vegetal, em Braga, preserva variedades agrícolas tradicionais; universidades e jardins botânicos - Lisboa, Évora, Porto, Madeira - mantêm bancos de sementes de flora nativa ameaçada. No setor privado, a Sementes de Portugal e o Viveiro Sigmetum já produzem sementes e plantas autóctones para restauro; e o ICNF mantém viveiros florestais que fornecem espécies nativas para reflorestação.
Falta, porém, o essencial: um programa nacional articulado que una ciência, viveiros públicos e privados, empresas e autarquias - e que garanta que o material usado em restauros tem proveniência genética certificada.
O que o mundo já faz
No Reino Unido, o Millennium Seed Bank, em Kew, conserva praticamente todas as espécies nativas e, através de iniciativas como o UK seed banking e o Native Seeds for Restoration, coloca coleções, dados e conhecimento ao serviço da investigação, da conservação e do restauro ecológico.
Na Alemanha, desde 2020, a lei federal obriga a que, na natureza, apenas se utilizem sementes e plantas de origem regional. Para assegurar essa proveniência, o mercado e a administração recorrem a certificações amplamente reconhecidas, estruturadas em 22 regiões de proveniência.
Dois modelos distintos, uma mesma lição: sem certificação e sem coordenação, arriscamo-nos a substituir ecossistemas por cenários artificiais.
O que podemos fazer
Conclusão: um apelo
O que está em jogo não é apenas salvar plantas raras: é manter viva a identidade ecológica de Portugal. Cada buxo do Douro, cada teixo do Gerês, cada alho-dos-ursos transmontano carrega uma história genética única, que não existe em mais lado nenhum.
Se nada fizermos, deixarão de habitar os nossos vales e serras para existirem apenas como memória em livros e herbários - ou, pior ainda, nas listas de espécies extintas.
Mas se agirmos - cidadãos, empresas, instituições - podemos transformar este paradoxo numa oportunidade: preservar a genética local e construir paisagens mais ricas, mais resilientes e verdadeiramente nossas.
Porque conservar as nossas plantas não é apenas proteger a natureza: é proteger quem somos.
Há plantas da nossa flora autóctone que sobrevivem à beira do abismo. Quase sempre discretas, agarram-se a ravinas, espreitam nas margens dos rios ou persistem no cimo de montanhas frias.
E, no entanto, basta atravessar fronteiras para as encontrarmos por todo o lado: em hortos e jardins, em parques urbanos, e até como invasoras difíceis de controlar.
A adelfeira (Rhododendron ponticum subsp. baeticum), também chamada loendro (não confundir com Nerium oleander), é um bom exemplo. Esta relíquia da Laurissilva continental tem a sua maior população na Serra do Caramulo, na Reserva Botânica de Cambarinho. Vive encurralada entre eucaliptais, como num anel combustível onde basta uma faísca para arder tudo e desaparecer para sempre. E, no Reino Unido, o congénere hibridado transformou-se numa das piores invasoras, cobrindo encostas inteiras sem pedir licença — a ponto de ser proibido por lei. Na minha opinião, esta espécie poderia ser uma estrela dos jardins portugueses, desde que em solos ácidos, que são o seu palco preferido.
O alho-dos-ursos (Allium ursinum), contado a escassas dezenas no Nordeste português, é abundante na Europa Central, onde cobre bosques inteiros. Em Trás-os-Montes, resiste numa única encosta com pouco mais de cem plantas; na Suíça ou na Alemanha é tão vulgar que se vende fresco nos mercados, ao lado das hortelãs e dos coentros, para sopas e pestos primaveris.
O buxo (Buxus sempervirens), reduzido a pequenas manchas nos vales do Douro, está cada vez mais ameaçado pela perda de habitat — barragens, alterações do uso do solo, incêndios — e, mais recentemente, pela praga asiática Cydalima perspectalis. Nos jardins formais da Europa, porém, continua a ser o rei da topiária, aparado em sebes geométricas que parecem esculturas vivas.
O pinheiro-baboso (Drosophyllum lusitanicum), ou erva-pinheira-orvalhada, é uma das nossas joias botânicas. Endemismo ibérico vulnerável, prefere solos pobres e secos, liberta perfume de mel e captura insetos em folhas pegajosas. Em Portugal, vivem menos de 2 500 indivíduos. Já na Austrália ou no Reino Unido é estrela de coleções privadas e públicas de plantas carnívoras, com sementes e plantas à venda na internet.
O noveleiro (Viburnum opulus), também conhecido como caneleiro, mal chega a mil indivíduos no Nordeste português. Os exemplares espontâneos não formam bolas de flores: as inflorescências são corimbos achatados, elegantes e subtis, ainda assim de grande beleza ornamental. Já os cultivares, com inflorescências esféricas, enfeitam jardins por todo o mundo.
O teixo, ou teixeira (Taxus baccata), sobrevive em ravinas sombrias do Gerês e da Estrela, com populações frágeis e envelhecidas. Noutras paragens, é plantado em cemitérios, jardins e parques, e venerado como árvore sagrada da Europa, capaz de viver mais de dois milénios.
O zimbro (Juniperus communis), discreto e raro em Portugal, restrito às altitudes frias, produz gálbulas usadas em todo o mundo para aromatizar gin. No hemisfério Norte é uma das coníferas mais comuns; por cá, é uma raridade.
O paradoxo é este: plantas ameaçadas em Portugal são comuns - ou até indesejadas - noutros países. Aqui, vivem no limite da sua distribuição, perderam habitat para barragens, fogos e monoculturas, sofrem com pragas invasoras e com um clima cada vez mais imprevisível. Lá fora, encontram condições favoráveis e quem delas cuide, multiplicando-se tanto em jardins como em projetos de restauro.
O problema invisível: a genética local
À primeira vista, a solução parece simples: se estão em risco, plantemos mais. Compremos em hortos, multipliquemos, enchamos os montes e os vales. Mas aqui está a armadilha: as plantas de horto não são iguais às selvagens.
São clones, cultivares, linhagens de proveniência incerta. Perderam diversidade genética, adaptaram-se a vasos e substratos artificiais. Quando cruzadas com as populações selvagens, podem diluir - ou até apagar - as adaptações locais, fruto de milhares de anos de evolução.
A genética local é, assim, um património biológico e cultural. É ela que garante resiliência, que dá às plantas capacidade de resistir a pragas, secas e incêndios. Perder essa genética é perder a memória viva da paisagem.
O que temos e o que falta
Portugal não parte do zero. O CENASEF, em Amarante, colhe e conserva sementes de árvores e arbustos florestais; o Banco Português de Germoplasma Vegetal, em Braga, preserva variedades agrícolas tradicionais; universidades e jardins botânicos - Lisboa, Évora, Porto, Madeira - mantêm bancos de sementes de flora nativa ameaçada. No setor privado, a Sementes de Portugal e o Viveiro Sigmetum já produzem sementes e plantas autóctones para restauro; e o ICNF mantém viveiros florestais que fornecem espécies nativas para reflorestação.
Falta, porém, o essencial: um programa nacional articulado que una ciência, viveiros públicos e privados, empresas e autarquias - e que garanta que o material usado em restauros tem proveniência genética certificada.
O que o mundo já faz
No Reino Unido, o Millennium Seed Bank, em Kew, conserva praticamente todas as espécies nativas e, através de iniciativas como o UK seed banking e o Native Seeds for Restoration, coloca coleções, dados e conhecimento ao serviço da investigação, da conservação e do restauro ecológico.
Na Alemanha, desde 2020, a lei federal obriga a que, na natureza, apenas se utilizem sementes e plantas de origem regional. Para assegurar essa proveniência, o mercado e a administração recorrem a certificações amplamente reconhecidas, estruturadas em 22 regiões de proveniência.
Dois modelos distintos, uma mesma lição: sem certificação e sem coordenação, arriscamo-nos a substituir ecossistemas por cenários artificiais.
O que podemos fazer
- Criar um Programa Nacional de Sementes Nativas, inspirado em Kew, com recolha controlada, bancos regionais e viveiros certificados.
- Implementar certificação de proveniência genética, à semelhança da Alemanha, tornando-a obrigatória em projetos públicos.
- Apoiar empresas especializadas, como Sementes de Portugal e Sigmetum, para aumentar escala e diversidade.
- Educar e sensibilizar: plantar “verde” não chega; o que conta é plantar verde nativo, de proveniência local.
Conclusão: um apelo
O que está em jogo não é apenas salvar plantas raras: é manter viva a identidade ecológica de Portugal. Cada buxo do Douro, cada teixo do Gerês, cada alho-dos-ursos transmontano carrega uma história genética única, que não existe em mais lado nenhum.
Se nada fizermos, deixarão de habitar os nossos vales e serras para existirem apenas como memória em livros e herbários - ou, pior ainda, nas listas de espécies extintas.
Mas se agirmos - cidadãos, empresas, instituições - podemos transformar este paradoxo numa oportunidade: preservar a genética local e construir paisagens mais ricas, mais resilientes e verdadeiramente nossas.
Porque conservar as nossas plantas não é apenas proteger a natureza: é proteger quem somos.

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