O glifosato e a medicina em Portugal - Somos aquilo que comemos
Cada vez mais médicos portugueses aconselham os seus pacientes a
apostarem numa alimentação saudável, consumindo produtos de agricultura
biológica, como forma de prevenção e combate a um sem número de
patologias.
Porquê esta aposta súbita no biológico?!
Partilho convosco um excerto do editorial da Revista Ordem dos Médicos
nº 161 (julho/agosto 2015) assinado pelo Dr. José Manuel Silva, atual
bastonário:
"Efectivamente, a sustentabilidade do planeta Terra e
as doenças ligadas ao meio ambiente são o grande desafio vital e ético
da humanidade e da medicina. Poderiam ser dados muitos exemplos. Um dos
milhares possíveis é o glifosato, vulgo Roundup, um dos seus nomes
comerciais, um herbicida usado de forma sistemática e generalizada na
agricultura e nas cidades e o mais utilizado em Portugal.
Na
última década a aplicação de glifosato em Portugal aumentou cerca de
50%, com 1400 toneladas usadas só em 2010. Ao todo, no mundo,
consomem-se mais de 130 milhões de toneladas por ano.
O resultado
é que o glifosato já é detetado em análises de rotina aos alimentos, ao
ar, à água da chuva e dos rios, à urina, ao sangue e até ao leite
materno. A sua presença é de tal modo generalizada que os limites legais
foram artificialmente “aliviados” para que pudesse continuar a ser
usado, com sérios riscos potenciais e cumulativos para a saúde humana.
Na União Europeia, em 1999, o limite máximo admissível para o glifosato
na soja subiu 200 vezes (de 0,1 para 20 mg/kg) e, em 2013, o governo
americano também alargou a tolerância para dezenas de alimentos. Outros
países, e até o Codex Alimentarius, têm feito o mesmo.
Não
esquecer que os produtos e sementes de plantas transgénicas
desenvolvidas para resistirem ao glifosato podem transportar maiores
concentrações deste tóxico, que é usado mais liberalmente nestas
circunstâncias para matar as plantas ‘daninhas’...
Artigos
recentes demonstram a associação epidemiológica e a plausibilidade
biológica do glifosato como factor potencialmente na génese do aumento
da incidência de doença celíaca, infertilidade, malformações congénitas,
doença renal, autismo e outras patologias (Interdiscip Toxicol, 2013; 6
(4): 159-84 // Int J Environ Res Public Health, 2014; 11: 2125- 147 //
Surg Neurol Int, 2015; 6: 45).
A mortalidade na intoxicação aguda
varia entre 3,2 e 29,3%, essencialmente por doença pulmonar e/ou renal.
Os vários mecanismos patológicos de ação do glifosato são bem
conhecidos, e vão das alterações da flora intestinal à disrupção do
citocromo P450, deficiências vitamínicas, quelação de metais,
deficiência em molibdénio e selénio, etc..
Uma preocupação
adicional é o facto da Agência Internacional para a Investigação do
Cancro (IARC) ter anunciado, em março deste ano, a sua nova
classificação para o glifosato, que passou a ser um “carcinogénio
provável”.
A IARC é a maior autoridade mundial no que toca ao
cancro e esta decisão foi tomada por unanimidade entre os 17
especialistas do painel liderado pelo Dr. Aaron Blair, um geneticista
que durante 30 anos dirigiu a unidade de neoplasias profissionais do
Instituto Nacional do Cancro americano.
A IARC avaliou em 1ª mão toda a
investigação científica publicada até à data nesta área, nomeadamente em
termos epidemiológicos. A razão pela qual não foi atribuída a
classificação de ‘carcinogénio demonstrado em humanos’ foi a evidência
limitada dos estudos epidemiológicos, particularmente complexos.
Três desses estudos mostram uma relação entre exposição de agricultores
ao glifosato e Linfoma não Hodgkin (LNH), cuja incidência muito tem
aumentado nos últimos 30 anos, enquanto que 1/4 aponta para o mieloma
múltiplo mas não encontra ligação com LNH. Embora as avaliações em
humanos não sejam, segundo a IARC, claramente incriminadoras (como
aconteceu, numa fase inicial, com tantos tóxicos), elas são altamente
preocupantes.
A demonstração dessa associação não é simples porque
existe um hiato de anos - às vezes, dezenas de anos - entre a exposição a
um agente carcinogénico e o aparecimento do ‘respetivo’ cancro.
Como se tudo isto já não bastasse, dois aspetos adicionais levam a crer
que o parecer do IARC poderá estar a pecar por defeito. O 1º refere-se
ao facto de que as avaliações se têm focado essencialmente no princípio
ativo - o glifosato propriamente dito - muito embora a formulação
comercial contenha outros compostos químicos.
Investigação consistente
aponta para que uma fatia significativa da toxicidade total dos
pesticidas possa ser atribuída a esses adjuvantes (BioMed Research
International. Vol 2014, Article ID 179691). Apesar da sua benigna
reputação, o Roundup está entre os mais tóxicos herbicidas atualmente em
uso na União Europeia.
Além disso, o ser humano está exposto
simultaneamente a compostos químicos de múltiplas origens e que podem
interagir de modo sinérgico.
Alguns exemplos são bem conhecidos em toxicologia: o tetracloreto de carbono e o etanol, em conjunto, têm um impacto bem mais devastador no fígado do que o da sua soma medida em momentos separados. Mas mesmo que o efeito seja apenas aditivo, sem sinergia, nada disso é considerado aquando da avaliação de risco, das aprovações dos compostos e da definição de classificações ou limites.
E
note-se que quem vive no mundo ocidental transporta no seu organismo
centenas de contaminantes sintéticos que nem sequer existiam há 200 anos
atrás.
Todos estes dados, e a falta de outros, devem impelir uma
reflexão cuidada sobre o futuro do glifosato, em particular, e da
gestão de risco químico no domínio alimentar, em geral. O mundialmente
reconhecido princípio da precaução estabelece que, face a evidências
nítidas de impacto negativo na saúde (ou no ambiente), a ausência de
provas científicas definitivas não deve impedir a implementação de
medidas minimizadoras.
Para o glifosato a conclusão é clara: este herbicida deveria ser suspenso em todo o mundo.
Quem deve agir em Portugal? Sem dúvida, a iniciativa cabe ao Governo e à
Direcção Geral da Saúde. Os interesses económicos não podem nem devem
impor-se ao imperativo moral da proteção da saúde da população.
A
morosidade dos procedimentos legais também não desculpa a inércia. A
legislação europeia permite a ativação rápida de cláusulas de
salvaguarda temporárias, enquanto a ciência não apresenta respostas
finais.
Abundam os cancros de origem indeterminada, e parte
decorre certamente da sociedade altamente industrializada e química em
que vivemos. No futuro deverá ser possível melhorar esse quadro. No
entanto, para os cancros que já podem ser evitados no presente, a inação
governativa é inaceitável.
Quanto aos médicos, não podem
continuar a alhear-se destas questões ambientais, sob pena de falharem
na prevenção da saúde, o essencial da sua missão, e em muitos
diagnósticos. O glifosato é apenas um exemplo entre muitos...”.
Quem teve paciência para ler até ao fim, percebe agora um pouco melhor
porque toda a agricultura portuguesa e mundial deveria rapidamente
reconverter-se?! Pela saúde todos nós e do Planeta onde temos o
privilégio de existir.
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