Ética olfactiva

Hoje venho falar-vos de um conceito pouco discutido pelo grande público, a ética olfactiva. Todos nós já viajamos no tempo, ao sentirmos um determinado tipo de odor numa outra pessoa, lugar ou contexto.

À medida que determinadas moléculas interagem com os 350 receptores olfactivos no nariz, os instintos de um ser humano são despertados. Ao interpretar as nuances do código do receptor olfactivo, a ciência actual visa entender como os seres humanos discriminam o odor para gerar emoções positivas, em todo o mundo.

O cheiro do cozinhado no forno, daquele bolo especial que a mãe costumava fazer, pode fazer-nos sorrir inesperadamente, porque nos remete de imediato para uma sensação de lugar-comum, onde de alguma forma fomos felizes, ainda que por momentos.

O cheiro é uma ponte importante entre as pessoas e a própria vida. Traz cores e emoções para o quotidiano, conferindo um significado especial a cada momento, mesmo que por vezes de forma imperceptível.

Esta associação imediata e involuntária designa-se por memória olfactiva e assume uma enorme importância nas relações humanas.

Ao desenvolver um novo produto, os melhores perfumistas mundiais não querem apenas um bom produto. Querem um produto excepcional, que faça perdurar as boas memórias olfactivas, relacionadas com quem o utiliza ou com o contexto.

Até aqui, tudo bem. O problema é que no dia-a-dia a coisa está longe de funcionar na perfeição. Porquê?! Porque existe uma absoluta ausência de ética olfactiva.

Se assumirmos que ao expormos alguém a um determinado aroma corremos o risco de ser indelicados ou incómodos, torna-se claro que certas sensações olfactivas, involuntárias ou não, podem provocar nos outros uma forte sensação de desconforto e até de repulsa.

Socialmente vamos interiorizando, desde muito cedo, determinados códigos de conduta, de forma a evitar causar este tipo de sensações. Quase todas as pessoas reconhecem que não se deve soltar um flato, que se adivinha malcheiroso, num lugar público, como o elevador ou no escritório.

Ou emitir gases do estômago pela boca durante uma conversa, depois de um bacalhau de cebolada. Estar próximo de indivíduos que emanam fragrâncias corporais desagradáveis, gera repulsa.

Então se sabemos tudo isto, se faz parte da nossa (boa) educação, porque é que ainda é tão frequente, quando se almoça ou janta fora, ter que gramar com um bedum insuportável, do cavalheiro ou da senhora que não conseguem medir a quantidade de perfume que despejam pelo corpo abaixo?

E que deixa um rasto de destruição, inibindo a fruição de todo e qualquer aroma do repasto? Antes o efeito, ainda que desagradável mas temporário, de um flato que nos é alheio, do que inalar o pernicioso e tragicamente duradouro efeito de qualquer perfume aplicado em excesso, durante uma refeição...

Da mesma forma, como é que em certos espaços de restauração, quem nos atende e serve não percebe que ao esfregar demoradamente o seu desodorizante favorito nas axilas ou ao dar banho às fuças numa dose ruinosa de aftershave, está na realidade a destruir a possibilidade de o cliente poder alguma vez voltar?

Como é que aqueles toalhetes de mãos com aroma a limão que nos impingem em certas marisqueiras ainda existem? Onde é que se vai buscar a coragem para abrir uma coisa destas, quando uma simples taça de água quente e uma rodela de limão fazem um serviço absolutamente exemplar, e se alguém beber, ninguém leva a mal?!

A falta de ética olfactiva não se resume apenas à restauração. Basta ir às compras a qualquer centro comercial para levar pelo nariz acima com a sua ausência. O mais recente fenómeno de falta de ética olfactiva chama-se marketing aromático.

Ao comprarmos um par de calças ou umas botas, corremos o risco de ir parar ao hospital. O pivete em certas lojas é de tal ordem intenso e nauseabundo, que um indivíduo fica zonzo e pode mesmo chegar a desfalecer.

Só porque cheira, não quer dizer que cheire bem. Tudo o que demais, é moléstia. Urge uma discussão pública sobre ética olfactiva.


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