Anágua-de-vénus
Há meses que nos cruzamos, quase todos os dias. Nas últimas semanas tem sido difícil disfarçar a enorme atração que desenvolvemos um pelo outro.
Fascina-me a sua incrível silhueta, gostava de lhe sentir o perfume numa noite quente e húmida de Primavera.
Ganhei coragem e parei para a cumprimentar. Não consegui resistir ao charme e à enorme elegância com que se veste, mesmo estando sempre ali, ao lado da estrada, sem nunca ter para onde ir.
Percebo agora que corteja deliberadamente com todos os que por ali passam, como um incessante apelo.
Tinha urgência em contar a sua história, escolheu-me porque intuiu que talvez seja esse o meu destino. Fez-me sentir tão especial, que não resisto em partilhá-la consigo.
A sua família viveu na América-do-sul durante séculos, em harmonia com o homem, com quem desenvolveu laços sagrados, participando nas cerimónias em que os humanos cultivavam os caminhos da espiritualidade.
Ninguém sabe ao certo como terá começado esta relação, formulam-se hipóteses, gosto cada vez mais da que refere que foram as plantas a ensinar-nos esses caminhos.
As anágua-de-vénus ou trombeta-de-anjo (Brugmansia sp.) são de tal forma sofisticadas, que nem se lhes conhecem os parentes ancestrais, é muito provável que o seu uso cerimonial remonte à pré-história, em toda a região Andina.
Recusa ter sido trazida à força para a Europa. Sempre quis viajar, tinha o sonho de partilhar com a humanidade o seu potencial para nos curar.
Não precisa de sementes, não é o sexo que lhe interessa, gosta da simplicidade e do conforto de ceder um ramo, assegurando que qualquer um de nós a consiga clonar, a partir de uma estaca.
Ensina que não se deve roubar, deve sempre pedir-se uma a quem a cuida. Os conflitos que a humanidade teria evitado se ao menos soubéssemos escutar.
O seu sonho cumpriu-se, pela mão do homem chegou ao mundo inteiro. Hoje é cultivada em grande escala, servindo a indústria farmacêutica com escopolamina.
Um fármaco vulgarmente utilizado para tratar uma lista tremenda de sintomas, como espasmos gastrointestinais, renais ou biliares, náuseas e vómitos pós-operatórios, cólicas intestinais ou em inflamações da conjuntiva e para exames oftálmicos e ainda em endoscopia e radiologia gastrointestinais.
Talvez já tenha tomado Buscopan, um medicamento à venda em todas as farmácias, para aliviar as dores de barriga, produzido a partir da substância ativa da planta.
Nem todas querem ser executivas de sucesso. Basta-lhes estar próximo dos seres humanos, mesmo que num recanto de um simples jardim.
Nas últimas décadas, a humanidade desencadeou uma procura desenfreada pela utilização de substâncias para fins recreativos, manchando a nossa ancestral e sagrada relação com esta maravilhosa planta.
Utilizadas sem qualquer cuidado, respeito ou conhecimento científico, as mesmas substâncias que produzem para nos curar, tem poderosos efeitos alucinogénicos.
É mesmo a mais potente e perigosa planta alucinogénica conhecida pelo homem. Por comparação, o cânhamo (Cannabis sp.) ou a coca (Erythroxylum coca), são quase inofensivas.
Não existe qualquer restrição ao seu cultivo. Um forte indicador de que as leis atuais sobre drogas não são fundamentadas em conhecimento científico.
No nosso país o seu uso indevido já causou intoxicações graves, tendo como sintomas febre e confusão mental, alucinações e delírios agressivos, e em alguns casos, a morte.
Muitas delas vivem num programa de proteção de testemunhas, nos jardins de metade das avós portuguesas. Tal como vivem muitas outras espécies, com potencial semelhante.
O de curar a maioria, quando utilizadas com respeito e conhecimento, o de intoxicar alguns, que não sabem compreender e respeitar a sacralidade da relação entre a natureza e a humanidade.
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