Adelfeira: planta relíquia das sombras húmidas da Península
A adelfeira tem nomes que contam geografias e equívocos. No sul, é adelfeira, eco de adelfa, voz ibérica antiga. No centro, muitos chamam-lhe loendro, o mesmo nome comum de Nerium oleander, o que explica confusões frequentes entre um rododendro de ravina húmida e um oleandro de leito mediterrânico.
Em Espanha, é ojaranzo, palavra que a fixa na toponímia botânica andaluza. Estes cruzamentos de nomes, locais e afetos não são um detalhe secundário: influenciam o olhar, a perceção pública e até a gestão.
É endémica da Península Ibérica, restrita a Portugal (Caramulo/Antuã e Monchique) e Andaluzia (sobretudo Los Alcornocales), com afinidades botânicas e históricas bem documentadas.
Em Portugal, a distribuição natural confirma duas grandes subpopulações: no centro, nos vales ripícolas do Caramulo e bacia do Antuã, e no sul, em encostas e linhas de água associadas à Serra de Monchique.
Em 2025, um levantamento exaustivo revelou vinte e seis novos núcleos na bacia do Antuã, ampliando de forma significativa o mapa nacional e reforçando a noção de um refúgio glaciário da Beira Litoral.
Em Espanha, a subespécie encontra-se sobretudo na Andaluzia, nos famosos canutos do Parque Natural de Los Alcornocales, entre Cádis e Málaga, vales encaixados e sombrios onde a humidade orográfica e a neblina de Levante persistem, sustentando um microclima atlântico em pleno Mediterrâneo.
No Catálogo Andaluz de Espécies da Flora Silvestre Ameaçada, o ojaranzo está classificado como Em Perigo de Extinção e figura igualmente no Libro Rojo de la Flora Amenazada de Andalucía como espécie em perigo, o que reconhece a singularidade destes vales-refúgio.
O estatuto de ameaça reflete a sua raridade e a fragilidade dos habitats. Em Portugal, a avaliação oficial enquadra a adelfeira como Vulnerável, com área de ocupação pequena e declínio contínuo na extensão e qualidade do habitat, pressionado por invasoras, conversão a eucaliptal e secas prolongadas.
No Caramulo, a espécie motivou a criação de uma área protegida em 1971, a Reserva Botânica de Cambarinho, um marco legal que protege vinte e quatro hectares e integrou entretanto a Rede Natura 2000. Hoje, a área é ZEC e objeto de iniciativas de gestão, interpretação e educação ambiental, com ações que convergem para o essencial: controlar invasoras, recuperar galerias ripícolas, reduzir a pressão do eucaliptal e restaurar a continuidade dos núcleos ao longo das linhas de água.
No Algarve e Sudoeste, o projeto LIFE-Relict aprofundou o conhecimento e a sensibilização sobre as adelfeirais de Monchique, contextualizando a adelfeira como uma das melhores representantes ibéricas das relíquias do Terciário e promovendo conservação in situ e comunicação de ciência ao público, tendo terminado em 2021.
A Andaluzia, além do enquadramento legal, desenvolveu planos de recuperação e gestão para flora ameaçada e definiu o habitat de interesse comunitário para alisiais com ojaranzo, reconhecendo explicitamente o caráter relicto destes bosques ripários. É ciência aplicada à escala da paisagem para manter a água fria, a sombra e a conectividade que a espécie exige.
A adelfeira é, antes de tudo, uma planta de lugares precisos. Prefere leitos e margens de cursos de água, sob coberto de galerias ripícolas e carvalhais, em solos ácidos, com humidade alta e sombra fresca. É nesta teia de microclimas que sobreviveu às grandes oscilações do Quaternário.
Nos canutos andaluzes, estes microclimas húmidos e frescos explicam a persistência de múltiplas relíquias da laurissilva continental. No Sudoeste português, as encostas abrigadas de Monchique e as ravinas atlânticas do centro cumprem funções ecológicas semelhantes.
Em 2003 fiz uma expedição pelo Algarve em busca desta planta, já na altura eram muito poucos aqueles que a conheciam na região. Com a ajuda do Sr. Jonas, agricultor e pescador de Maria Vinagre, encontrei as adelfeiras da Serra de Monchique, sempre junto a linhas de água, muitas vezes já dominadas por vegetação invasora, sinal da forma descuidada como tratamos o nosso património vegetal (http://cantinhodasaromaticas.blogspot.com/2009/05/rododendros-adelfeiras-loendros.html).
Em 2010, regressei ao tema com uma reportagem em direto para a RTP, desta vez a partir da Reserva Botânica de Cambarinho, no Caramulo, para mostrar ao público a maior mancha nacional desta relíquia endémica: vinte e quatro hectares em flor, um espetáculo de rara beleza efémera que pede silêncio e reverência perante a sua singularidade (http://cantinhodasaromaticas.blogspot.com/2010/05/loendros-na-reserva-de-cambarinho.html).
Recordo bem uma visita de 2023. Subia o vale no Caramulo quando o perfume do feno-de-cheiro (Anthoxanthum odoratum) suspendeu a minha marcha e me transportou de imediato para memórias antigas.
Soltava das folhas o aroma a feno fresco com um toque de baunilha. Havia violetas pálidas nos lameiros, a água a limar a pedra e, entre flores de adelfeira, a sensação de ter vislumbrado um anjo. A botânica também se escreve com nariz e coração, e é esse fio que nos liga à conservação.
Na etnobotânica da adelfeira, o registo ibérico é sobretudo negativo e prudente, por boas razões. Todo o género Rhododendron pode concentrar grayanotoxinas no néctar e no mel.
O célebre mad honey do Mar Negro, produzido a partir de R. ponticum e R. luteum, é conhecido desde a Antiguidade pelos efeitos neurocardíacos, hipotensores e alucinogénios, fenómeno restrito às regiões do Mar Negro onde estas espécies são comuns.
Revisões toxicológicas recentes, e pareceres de autoridades de segurança alimentar europeias, descrevem o quadro clínico, os mecanismos e a distribuição geográfica do risco. Em Portugal e Espanha, não há tradição segura de uso medicinal ou alimentar desta planta e deve desaconselhar-se qualquer uso interno. O seu valor está no património natural, na educação e na interpretação.
Também importa desfazer um mal-entendido recorrente. Enquanto em Portugal e Espanha a adelfeira é nativa, rara e protegida, no Reino Unido e Irlanda o nome Rhododendron ponticum tornou-se sinónimo de espécie invasora.
As populações invasoras terão origem maioritariamente em material da subespécie baeticum, havendo indícios de introgressão histórica com espécies norte-americanas como R. catawbiense e R. maximum, o que poderá ter contribuído para aumentar a rusticidade e a capacidade de expansão.
Essa nuance genética, somada a uma plasticidade ecológica que lhe permite ocupar nichos distintos dos da sua área nativa, ajuda a explicar diferenças de comportamento entre contextos. As consequências são bem documentadas: sombreamento intenso, supressão da regeneração de espécies nativas e perdas de biodiversidade, razão por que existem guias técnicos oficiais para o seu controlo e erradicação.
Esta história dupla mostra como um símbolo de conservação nos nossos ribeiros pode ser, noutro cenário biogeográfico, um problema sério.
As ameaças atuais na Península são claras e convergentes. A fragmentação dos núcleos, a competição de invasoras nos vales, a substituição por eucaliptal e o agravamento de secas e ondas de calor reduzem a resiliência destas galerias ripícolas.
A resposta passa por ligar pequenas manchas ao longo das linhas de água, controlar invasoras como acácias, restaurar sombreamento e fluxo hídrico, e manter a pressão de visitação compatível com a fragilidade dos habitat.
Não são apenas as centenas de variedades de rododendros, vindas de viveiros distantes, que têm valor para os nossos parques e jardins. A adelfeira poderia ser uma estrela selvagem. Tem uma elegância rara, talvez a mais distinta entre todas as nossas autóctones, capaz de rivalizar com as mais apreciadas espécies ornamentais do mundo.
Não será exagero afirmar que, cultivada com respeito pelos seus caprichos, poderia transformar recantos de parques e jardins em verdadeiros templos de beleza efémera, onde cada primavera se abriria em lilás um segredo guardado da floresta antiga.
Volto a Cambarinho quando posso, porque ali a adelfeira é mais do que planta. É uma mestre paciente. Ensina que os refúgios contam. Que a água fria precisa de sombra. Que nomes confundem mas o lugar explica.
E que a conservação não é uma fotografia estática, é uma história viva que se escreve com dados, mãos e uma certa teimosia. Foi assim em 1971, quando um decreto inaugurou a proteção do loendro; é assim hoje, quando novas cartografias no Antuã abrem capítulos promissores e nos pedem o mesmo de sempre: cuidar.
Referências bibliográficas
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