Entre fragas e dunas: a vida secreta do zimbro

É grande o meu abecedário de plantas, mas termina sempre com z de zimbro, guardião discreto das fragas e das dunas. 

O zimbro-comum (Juniperus communis) é uma das plantas mais antigas e discretas das nossas serras. No nosso país apresenta-se em duas formas: a subespécie alpina, o chamado zimbro-rasteiro, que se deita rente ao chão frio e pedregoso, e a subespécie hemisphaerica, que se ergue em pequenos arbustos nas clareiras altas.

São formas de limites pouco nítidos, consideradas por vários botânicos de consistência taxonómica duvidosa, que convivem lado a lado nas montanhas e até se podem misturar, dando origem a indivíduos de difícil classificação.

 

Esta incerteza, longe de ser um problema, é sinal da plasticidade desta espécie e da sua capacidade de se adaptar às condições extremas das serras.

 

Encontramo-las sobretudo no Gerês e na Serra da Estrela, acima dos mil metros, nos urzais orotemperados onde a neve se demora e o vento afia as agulhas.

 

Este verão parti em busca dos exemplares do Gerês, caminhando por urzais e encostas, presenciei como o calor e a seca castigaram muitas das plantas, deixando-as secar lentamente.

 

Alguns exemplares previamente cartografados desapareceram, lembrando como esta espécie é vulnerável às mudanças do clima. É um sinal claro de que as alterações climáticas já estão a transformar o território e a ameaçar silenciosamente estas populações de zimbro, tornando o seu restauro uma urgência e não apenas uma opção de conservação.

 

Os frutos, a que vulgarmente chamamos bagas, são na realidade gálbulos, cones carnosos e arredondados que escondem no seu interior, duas a três sementes. Demoram dois a três Invernos a amadurecer e podem coexistir na mesma planta gálbulos verdes, azulados e maduros.

 

Esta maturação prolongada e dependente do clima faz com que a espécie apresente anos de grande produção seguidos de anos de fraca frutificação, um ciclo irregular de safra e contra safra que marca o ritmo natural do zimbro e condiciona a sua regeneração.

 

Nas dunas do centro e do sul encontramos o piorro (Juniperus navicularis), endémico da Península Ibérica, que sustenta os zimbrais de areia do Sado ao Algarve, passando pelo litoral alentejano e vicentino. É classificado como Quase Ameaçado em Portugal, pois o habitat está fragmentado e as populações envelhecem sem recrutamento sexual eficaz.

Com ele cresce a sabina-da-praia (Juniperus turbinata subsp. turbinata), formando zimbrais densos nas dunas e nas encostas ensolaradas do litoral, elemento central do habitat 2250 da Diretiva Habitats, prioritário para conservação. Apesar de globalmente pouco preocupante, enfrenta pressões locais como urbanização, pisoteio e invasoras como o chorão e a acácia.

 

O projeto Zimbral for LIFE tem sido exemplar no estudo e recuperação destes habitats, removendo invasoras, criando clareiras de luz, plantando indivíduos de origem local e acompanhando a dinâmica das populações para garantir que as novas plantas chegam à idade reprodutiva.

 

Mais para o interior encontramos o zimbro-bravo (Juniperus oxycedrus subsp. oxycedrus), um arbusto robusto que sobe encostas de solos pedregosos, do Nordeste transmontano ao Alto Tejo.

 

Existe também a forma de bagas maiores, Juniperus oxycedrus subsp. macrocarpa, presente quase exclusivamente em sistemas dunares antigos e praias de areia fina da faixa litoral mediterrânica e atlântica, onde forma manchas raras e valiosas para a biodiversidade costeira.

 

Embora consideradas de menor preocupação a nível global, estas populações estão em regressão em locais onde o mosaico rural se fechou, faltam clareiras e a regeneração natural é escassa. O projetoSAVE Oxycedrus cartografou estas populações e ensaia reprodução e plantação de reforço para evitar perdas irreversíveis.

 

Nas ilhas, o cedro-do-mato (Juniperus brevifolia subsp. brevifolia), endémico dos Açores, é classificado como Vulnerável pela IUCN e constitui o coração das florestas húmidas de altitude, essenciais para reter água e solo.

 

Na Madeira sobrevive o cedro-da-Madeira (Juniperus cedrus subsp. maderensis), outrora abundante, hoje raríssimo, sujeito a programas de recuperação. Estes cedros são símbolos vivos da laurissilva atlântica e exigem paciência de décadas para recuperar.

 

As causas de declínio são distintas. O zimbro-comum sofre com incêndios, isolamento de núcleos e verões mais secos. As alterações climáticas agravam estas pressões: as ondas de calor prolongadas e a menor disponibilidade de humidade no solo reduzem a sobrevivência das jovens plantas e aceleram a mortalidade de indivíduos adultos, como já se observa em vários locais no Gerês.

 

O piorro e a sabina-da-praia são vítimas da fragmentação do habitat, da baixa regeneração e da pressão humana sobre as dunas. O zimbro-bravo perde espaço com o fecho do mosaico e a ausência de distúrbios moderados.

 

Nos cedros insulares pesam os legados de exploração madeireira e a competição de espécies exóticas. Planos de gestão e projetos de conservação recomendam restauro ativo: reabertura de clareiras, controlo de coberto invasor, sementeira dirigida, uso de material genético local e exclusão temporária de herbívoros para permitir o estabelecimento de jovens plantas.

 

Nas dunas criam-se microsítios abrigados, planta-se com tutores e proteção contra salsugem e vento e mantém-se a dinâmica eólica. Em altitude, seguem-se protocolos de sementeira em rochedos e proteção de jovens plantas até ao terceiro ano.

 

As leis nacionais e europeias amparam estas ações. O Decreto-Lei 140/99 e a transposição da Diretiva Habitats protegem habitats prioritários como as dunas com juníperos e as formações de Juniperus communis em charnecas.

 

Nas ilhas, planos de gestão florestal integram medidas específicas para o cedro-do-mato e o cedro-da-Madeira. Estes instrumentos são fundamentais para impedir destruição de habitat e orientar investimento em restauro.

 

A relação do ser humano com o zimbro perde-se no tempo. Fontes de etnobotânica sugerem que ramos de zimbro eram queimados em rituais de purificação e para perfumar ambientes, possivelmente também para manter afastadas pragas e maus espíritos.

 

Os autores clássicos descrevem o uso das bagas pelos romanos como tempero e para fumigações medicinais, aproveitando o seu aroma resinoso. Na Idade Média, em várias regiões da Europa, o fumo do zimbro foi usado para fumigar casas e estábulos em tempos de doença, na esperança de afastar a peste e purificar o ar. Hoje ainda encontramos bagas secas usadas para temperar caça e aromatizar aguardentes, e o seu aroma continua a ser o ingrediente central do gin.

 

Em muitos países onde os zimbros são espontâneos, aproveitam-se de forma engenhosa as suas virtudes. Do zimbro-comum extraem-se óleos essenciais para uso farmacêutico e cosmético, reconhecidos pela Agência Europeia do Medicamento para apoio digestivo e aplicações tópicas.

 

Da madeira e dos ramos de várias espécies de Juniperus, incluindo J. oxycedrus, obtém-se o óleo de cade, famoso pelas propriedades dermatológicas e ainda hoje usado em sabonetes e loções.

 

Nos Estados Unidos, de Juniperus virginiana extrai-se o cedarwood oil, valorizado em perfumaria e como repelente natural, enquanto na Turquia se produz o andız pekmezi, um melado escuro obtido dos grandes gálbulos de Juniperus drupacea, alimento energético com longa tradição popular.

 

No norte da Europa, os ramos e frutos dão aroma à cerveja sahti da Finlândia e a licores alpinos como o kranewitt, e na Alsácia são indispensáveis na choucroute. Estas utilizações mostram a versatilidade dos zimbros e a importância cultural que mantêm ao longo de séculos.

 

E porque o zimbro é também alma de copo, vale a pena lembrar que nem todo destilado aromático pode usar o nome de gin. Tal como a cerveja só é cerveja se tiver lúpulo, também o gin só é gin se o zimbro lhe der a nota dominante.

 

Assim o determina o Regulamento (UE) 2019/787: é obrigatório que o álcool seja de origem agrícola, que a bebida tenha pelo menos 37,5 % de volume alcoólico e que o sabor de Juniperus communis seja predominante.

 

Esta regra não é mero detalhe jurídico, é uma garantia de que cada gole transporta o espírito da planta.

 

A história do gin começou muito antes de haver regulamentos. Nasceu do genever, um destilado de grão aromatizado com zimbro que os holandeses e belgas já produziam no século XVI para adoçar e curar o corpo. Dali viajou para Inglaterra, onde se transformou no que hoje conhecemos como gin.

 

Em 2017 aceitei o convite da Gran Cruz para engarrafar os aromas da Quinta de Ventozelo, no Douro, numa garrafa de gin. Identifiquei e selecionei espécies do bosque mediterrânico local. Macerámos as plantas selecionadas em álcool vínico dos vinhos de Ventozelo, ajustámos o perfil e apresentámos o novo gin no aniversário da Gran Cruz.

 

A prova final foi inesquecível. Como resultado um gin elegante e distinto, premiado com medalha de prata no Gin Masters 2021 e no London Spirits Competition. Quando esta etapa terminou senti que se fechava um ciclo bonito de colaboração entre ciência, agricultura e indústria e ainda hoje sinto orgulho sempre que vejo uma garrafa deste gin.

 

Encontramos no mercado português produtos que utilizam zimbro de origem declarada, como aguardentes de zimbro serrano, embalagens de bagas secas para culinária, hidrolatos e óleos essenciais produzidos por destiladores nacionais.

 

Muitos gins artesanais anunciam uso de zimbro colhido em Portugal. Ainda não existe uma fileira estruturada para produção em escala, mas há espaço para organizar recolha sustentável e certificada, garantindo que a colheita não compromete a regeneração das populações.

 

Em parques e jardins de Portugal vemos com frequência espécies exóticas de juníperos, como J. chinensis, J. horizontalis, J. scopulorum ou J. squamata, escolhidas pelo seu valor ornamental e facilidade de cultivo.

 

Contudo, as nossas espécies autóctones são ideais para xerojardins e projetos de baixo consumo de água: são robustas, adaptadas ao clima, exigem pouca manutenção e trazem para os espaços urbanos o perfume e a biodiversidade do nosso território.

 

Incentivar viveiros e paisagistas a utilizá-las seria uma forma de ligar cidade e natureza, e ao mesmo tempo contribuir para a conservação e valorização das espécies de zimbro autóctones.

 

Os frutos do zimbro têm também um lugar na nossa gastronomia. Aromatizam pratos de caça, cabrito e javali, são usados em marinadas e em salmouras de enchidos artesanais.

 

O seu sabor resinoso e fresco confere identidade a receitas tradicionais e combina com carnes fortes e compotas de fruta, prática registada em livros de cozinha e estudos etnográficos sobre alimentação serrana. A sua presença discreta é um sinal de autenticidade e respeito pela paisagem.

 

É no entanto um condimento que vive esquecido, correndo o irremediável risco de se perder.

 

Quero terminar com uma imagem de infância: Panoramix, o druida, juntava à poção mágica zimbro recolhido com a Foice de Ouro, que dava força sobre-humana aos gauleses. É uma imagem perfeita para o que o zimbro representa.

 

Quando esmagamos um gálbulo e sentimos o seu aroma, é como beber um gole dessa poção: recebemos um pedaço da montanha, da duna, da ilha. Se cuidarmos dos zimbros, eles continuarão a dar-nos essa força invisível que sustenta as nossas paisagens e a nossa memória.

 

Sabina-da-praia (Juniperus turbinata subsp. turbinata)

 

Principais referências bibliográficas:

  • Flora-On (2025). Juniperus communis, J. navicularis, J. oxycedrus, J. turbinata. Sociedade Portuguesa de Botânica.
  • ICNF (2023). Planos de Gestão de Habitats e Diretiva Habitats – Habitat 2250. Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas.
  • LIFE Zimbral (2022). Relatórios técnicos do projeto Zimbral for LIFE – conservação de zimbrais dunares. Universidade de Évora e parceiros.
  • SAVE Oxycedrus Project (2021). Cartografia e ensaios de reforço populacional de Juniperus oxycedrus. Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD).
  • União Europeia (2019). Regulamento (UE) 2019/787 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo à definição, designação, apresentação e rotulagem das bebidas espirituosas.
  •  EMA (2014). Community herbal monograph on Juniperus communis L., galbulus. European Medicines Agency.
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  • Tisserand, R. & Young, R. (2014). Essential Oil Safety: A Guide for Health Care Professionals. 2ª edição. Elsevier. (Capítulo: Cade Oil)
  • Turkish Journal of Ethnopharmacology (2019). Traditional production and medicinal uses of Andız Pekmezi from Juniperus drupacea.
  • Mosher, R. (2015). Sahti: Traditional Finnish Beer with Juniper. BeerAdvocate Magazine.
  • Moser, C. (2016). Kranewitt und Enzian: Alpine Spirits and Their Cultural Significance. Austrian Journal of Ethnology.
  • Instituto de Ciências Sociais – Universidade de Lisboa (2012). Alimentação em Portugal: práticas tradicionais e inovação. Capítulo: uso de plantas aromáticas em enchidos e caça.
  • Santos, J. et al. (2019). Etnobotânica alimentar em Trás-os-Montes: usos tradicionais de Juniperus communis. Cadernos de Etnobotânica.

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