Assim Falou a Planta

Quando descobri que a Mónica Gagliano viria a Lisboa a 15 de maio para a conferência Human Entities 2024 – A cultura na era da inteligência artificial, no Grande Auditório da Faculdade de Belas Artes, senti um chamamento súbito, como se uma força profunda, quase indizível, me conduzisse naquela direção. 

Parti com o coração acelerado, guiado por uma urgência que não era apenas curiosidade, mas o pressentimento de que algo em mim mudaria para sempre.

Demorei um ano e meio a reunir coragem para deixar que estas palavras ganhassem forma, para as fazer nascer na luz branca do ecrã, onde a memória se transforma em escrita e o tempo, enfim, se deixa contar. Só agora consegui intuir por inteiro a dimensão desta experiência, aquela dança de escuta, ciência e presença que mudou para sempre a minha forma de ver as plantas, o mundo e a mim mesmo.

O auditório estava repleto, a atmosfera vibrava de expectativa e, quando ela abriu a boca para falar, senti o ar tornar-se leve, como se o tempo tivesse decidido parar por instantes. As suas palavras não eram meramente científicas. Eram convites. Eram acordes de um universo que insiste em existir para lá do que julgamos percetível.

Ela falou de plantas como presenças discretas e vivas, de consciência vegetal, de diálogos silenciosos entre seres que respiram sem corpo de animal, mas com raízes de memória e sensibilidade. Eu, com o olhar de quem já aprendeu a escutar a terra, senti essa verdade pulsar dentro de mim como um eco ancestral.

A palestra terminou, mas para mim tudo estava apenas a começar. No final do evento, um convite inesperado levou-me até à mesa de um jantar onde o acaso, ou talvez algo maior, quis que ficássemos sentados lado-a-lado. Conversámos durante horas, atravessámos fronteiras de tempo e pensamento. E, nesse instante de pausa luminosa entre palavras, compreendi a delicada reverência que a ciência pode devolver ao mistério de existir.

Meses antes tinha comprado o seu livro Thus Spoke the Plant. Na altura era apenas mais volume na prateleira, um de muitos, na fila de espera de um leitor compulsivo. Depois, tornou-se um portal. O livro não é só investigação. É uma fitobiografia nascida em comunhão com as próprias plantas. 


A autora desafia a encarar as plantas não como meros objetos de estudo, mas como sujeitos de relação, dotados de perspetiva, urgência, memória, talvez vontade. A isso me agarrei: a ideia de devolver à botânica o espaço do mistério e da escuta, de permitir que as plantas não apenas sejam investigadas, mas convidadas a falar.

O livro mistura ciência, filosofia e espiritualidade. Entre capítulos leem-se conversas com povos indígenas, sabedoria ancestral, travessias de cultura e vivência sensível. A editora North Atlantic Books descreve-o como um testemunho de descobertas científicas e de encontros íntimos com o vegetal, uma jornada de transformação pessoal e científica.

Essa descrição pareceu-me justa, não como luxo literário, mas como o reflexo íntimo da metamorfose que o seu pensamento despertou em mim.

A parte do seu trabalho que mais me impressionou foi precisamente essa inversão de trato: permitir que as plantas surjam como interlocutoras, dar voz àquilo que sempre foi relegado ao silêncio das folhas. 


A Mónica não é apenas uma autora sensível. É uma investigadora séria. Teve a coragem de ser pioneira no que hoje se chama bioacústica vegetal, mostrando através de experiências publicadas com revisão por pares que as plantas podem emitir sons, mas sobretudo que conseguem detetar vibrações do ambiente e reagir a elas. 


Num dos seus estudos mais notáveis, trabalhou com a ervilheira (Pisum sativum) para revelar que as raízes eram capazes de pressentir uma fonte de água guiando-se apenas pelas vibrações do seu movimento, mesmo quando a terra à sua volta permanecia totalmente seca.

Quando a humidade surgia em conjunto com essas vibrações, as raízes inclinavam-se naturalmente para o gradiente húmido, mas as vibrações funcionavam como um anúncio antecipado, um sussurro subterrâneo que desenhava um mapa invisível antes de a água se tornar palpável.

Essa descoberta abriu um novo horizonte na fisiologia vegetal e deu corpo experimental à ideia de fonotropismo, o crescimento orientado por som e vibração, onde o mundo acústico se torna bússola para as plantas que exploram na escuridão do solo.

Outros estudos da Mónica exploraram a memória vegetal. Recorrendo à fascinante Mimosa pudica, uma espécie sensível ao toque, ela observou que, após repetidos estímulos inofensivos, as folhas deixavam de se fechar.

A planta habituava-se ao estímulo, o que foi interpretado como aprendizagem elementar. É uma provocação discreta à ideia de que aprender é só para seres com cérebro. Nesse gesto, a planta ensinava paciência, repetição, constância.

Mais ousada ainda foi a hipótese de aprendizagem por associação. Em experiências conduzidas com ervilheiras num labirinto em Y, a Mónica observou que as plantas pareciam capazes de relacionar estímulos que, à primeira vista, nada tinham em comum.

O fluxo de ar produzido por um ventilador e a direção da luz tornaram-se pistas entrelaçadas, como se as plantas intuíssem que vento e claridade caminhavam lado a lado na promessa de crescimento.

Essa pesquisa atraiu atenção e ceticismo, como é natural na ciência de fronteira. Alguns esforços de replicação não confirmaram os resultados e a comunidade científica sublinhou a necessidade de mais controlo e rigor. Ainda assim, o tema permanece vivo. A provocação não é certeira para todos, mas deixou a semente de uma nova pergunta sobre cognição vegetal.

Para mim, esse corpo de trabalho reintroduziu o espanto dentro da ciência e devolveu à investigação a sua dimensão de reverência. Não se trata de abdicar da precisão, mas de expandir a consciência científica até ao limiar do sensível, de acolher hipóteses que desafiam as certezas e de desenhar as experiências com humildade e generosidade.

E compreendi que a ciência, quando se aproxima do mundo com verdadeira humildade, não é um edifício de certezas imutáveis, mas uma arte de permanecer atento, de aceitar que cada pergunta abre um caminho novo e que nenhum muro é definitivo.

Guardo na memória o jantar, a mesa iluminada por candeeiros antigos, o ambiente de saudável tertúlia, o ruído gentil da conversa, as pausas cheias de significado. Falei do Porto, das minhas perpétuas-roxas, da plantação de chá, do tomilho bela-luz e da Santíssima Trindade que alberga no seu íntimo, do cheiro da terra molhada.

Ela falou das linguagens que sempre vibraram no coração das plantas, desses murmúrios subterrâneos que a ciência começa agora a pressentir, das raízes que tateiam o mundo, como antenas vivas a decifrar o invisível, da água que ensaia o percurso antes de o cumprir, da terra que responde como um corpo vivo. 


E, à medida que as suas palavras se desdobravam, senti que conversávamos muito para lá da superfície, como se trocássemos perguntas sem voz e escuta sem ruído, guiados por uma mesma curiosidade essencial.

Ao despedirmo-nos, arrisquei a pergunta que guardara até ao fim. Perguntei-lhe se nos reencontraríamos um dia. Ela olhou-me com a sua expressão doce e serena e disse que certos regressos não se forçam, acontecem quando a vida nos chama.

Talvez tenha sido nessa noite que compreendi verdadeiramente o alcance da sua obra. Escutar as plantas é aprender a escutar o mundo, não apenas com os ouvidos, mas com o corpo inteiro, com a respiração, com o coração. A ciência pode medir, pode quantificar, pode registar factos, mas só o coração percebe o que significa pertencer, pertencer a um mundo vivo, vasto, repleto de sentidos que ainda nos escapam.

Assim Falou a Planta e, através dela, reencontrei a poesia da ciência. Fiquei a saber que a curiosidade não é apenas um método de investigação, mas uma forma de amor. Que a verdadeira escuta acontece quando deixamos de procurar respostas imediatas, quando nos permitimos estar, inteiramente, diante do mistério do que vive.

Sei que este texto chega com um atraso de tempo, com o peso de dias, meses e incertezas. Talvez por isso mesmo esteja mais maduro, mais consciente. Hoje, 18 meses depois desse encontro, sinto que o eco desse 
momento ainda ressoa em mim e percebo quão valiosa foi essa demora.

Há quem leia Thus Spoke the Plant com deslumbramento e há quem o encare com cautela. É importante dizê-lo. O livro não é consensual dentro da comunidade científica e algumas das experiências que o sustentam continuam a gerar debate, dúvidas e tentativas de replicação que nem sempre chegam às mesmas conclusões.

A abordagem da Mónica não segue os caminhos ortodoxos da investigação clássica. Mistura dados experimentais com vivências íntimas, cruza ciência com escuta interior, convoca sabedorias que raramente entram nos laboratórios. E é precisamente aí que reside a sua força.

Apesar da controvérsia, há académicos que reconhecem no seu trabalho um gesto corajoso, um sopro necessário num campo por vezes demasiado rígido. Respeitam-lhe o arrojo, o risco, a capacidade de abrir perguntas onde muitos só veem fronteiras.

Talvez por isso este livro divida opiniões, mas nunca deixa ninguém indiferente. Reconheço que é deste impulso indomável que surgem as investigações que deixam marca.

Sei que há leitores que vão estranhar estas ideias, porque a história da ciência ensinou-nos a desconfiar de tudo o que nasce à margem. Mas vale a pena recordar que o mundo vegetal já teve os seus heréticos que, com o tempo, acabaram por se tornar mestres.

Darwin ousou sugerir que a ponta das raízes funcionava como um centro de perceção da planta e essa intuição ficou durante muito tempo ignorada e envolta em controvérsia, antes de ser retomada pela biologia moderna.

Jagadish Chandra Bose foi muitas vezes acusado de exagero e até de misticismo quando mostrou que as plantas exibem impulsos elétricos, e hoje é visto como um dos grandes pioneiros da eletrofisiologia vegetal.

Barbara McClintock falou de genes que se movem e viu o seu trabalho ser recebido com ceticismo e incompreensão, até que a biologia molecular confirmou as linhas essenciais das suas descobertas e lhe deu, muitos anos depois, o Nobel.

Lynn Margulis defendeu que as células eucarióticas, incluindo as vegetais, nasceram de simbioses antigas entre bactérias e a sua teoria foi sucessivamente rejeitada e criticada, até que o ADN de mitocôndrias e cloroplastos lhe deu razão e a transformou num dos pilares da biologia moderna.
 
Fica o convite. Leia Thus Spoke the Plant. Poucos livros abrem caminho para um entendimento das plantas tão íntimo e transformador. Acredito que a/o mudará como mudou a mim.
 
 





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