Círculo da Vida

Hoje voltei ao velho edifício do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), como orador convidado dos Seminários Científicos de Terapias Complementares em Saúde, para apresentar a palestra “Perspetiva Histórica e Consumo de Plantas Aromáticas e Medicinais em Portugal”.

A sala onde decorreu o evento é um belo anfiteatro de madeira, com escadarias polidas pelo tempo e pelas gerações que ali se formaram. Sentei-me durante instantes num dos lugares da primeira fila e deixei que o silêncio da sala me envolvesse, um silêncio que parece guardar ecos de vozes, passos e pensamentos dos que ali passaram antes de nós.

Quando me aproximei da janela, entrevi a porta principal do hospital de Santo António. A mesma porta por onde saí nos braços dos meus pais, recém-nascido, há 53 anos. Pressenti o círculo que a vida, com a sua estranha sabedoria, parece por vezes traçar sem aviso. Partilhei esta curiosidade com a plateia logo no início, porque certos instantes merecem ser anunciados.

No final da sessão, entre a delicadeza habitual da audiência, com gestos e palavras de agradecimento, o querido Professor Jorge Machado olhou para mim, com aquela serenidade profunda que só os verdadeiros mestres possuem, e disse que ‘a minha vida, desde o instante em que atravessei aquela porta, até ao dia de hoje, se desenrolara de forma incrivelmente bela e produtiva’.

As palavras do Professor abriram dentro de mim uma clareira funda. Num simples gesto de voltar o olhar para a rua, senti a minha própria vida desenrolar-se inteira diante de mim, década após década, como se o tempo cedesse, por fim, ao seu próprio peso.

Recordei o menino que fui e o jovem que buscava um caminho entre plantas e livros. Vi o adolescente, aluno interno na Escola Agrícola de Santo Tirso, um rapaz da cidade a aprender o ritmo do campo, o corpo vivo da terra e a linguagem secreta das estações.

Revi o jovem adulto que se deixava maravilhar pelos vales e horizontes de Trás-os-Montes, enquanto estudava Engenharia Agronómica na UTAD, percebendo enfim que aquela vocação que julgava apenas a ganhar forma tinha, afinal, sempre estado ali, guardada como uma força antiga, à espera do seu momento para despertar.

Vislumbrei o encarregado geral dos jardins de Serralves, nos primeiros anos de vida profissional, a encontrar no desenho da paisagem uma disciplina exigente e uma forma de pensamento que me acompanhariam para sempre.

Vi o homem que se fez agricultor, moldando o futuro com as mãos e com as plantas que ainda hoje caminham comigo como companheiras de jornada. Vi o consultor que, agora, ajuda as empresas a reencontrar a natureza e a abrir nela caminhos de regeneração e sentido.

Surgiram os rostos, lugares, vozes, viagens e projetos que me reinventaram ao longo do tempo e que continuam a devolver-me, de forma inesperada, novas maneiras de estar no mundo.

E senti algo que me tocou fundo. A consciência de que todos estes capítulos, somados, formam uma existência abundante, intensa, surpreendente. Nada se perdeu. Nada foi em vão. Cada gesto plantado ao longo do caminho regressou agora, por um segundo, reunido num só fôlego. Saí do anfiteatro com o coração quente e uma gratidão imensa. A vida concedeu-me muito.

Concedeu-me pessoas generosas, paisagens que ficaram gravadas para sempre, desafios que me obrigaram a crescer e uma profissão que se tornou destino. Ao vislumbrar novamente a porta do hospital de Santo António, compreendi que regressar simbolicamente ao ponto de partida não foi um retorno, foi uma revelação.

Foi perceber que tudo, desde o primeiro dia, estava à espera de ser vivido desta forma. Hoje senti isso com clareza. E é difícil imaginar maior privilégio. Regressei a mim comovido, como quem regressa da viagem de uma vida inteira.

O Professor tinha razão. A vida tem sido belíssima, inesperada, generosa. E hoje, diante daquela porta que marcou o primeiro passo do meu caminho, percebi a extensão da minha gratidão. Por tudo o que vivi. Por tudo o que aprendi. Por tudo o que ainda está por vir. Por cada pessoa que, ao longo das décadas, me ajudou a despertar para o que verdadeiramente importa. 

Regressei a casa com o coração cheio, sabendo que há instantes que nos revelam com clareza a beleza de ter vivido. Hoje foi um deles.
 





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