Ginkgo biloba, anatomia de um outono

O ginkgo (Ginkgo biloba) é uma árvore que parece trazer o passado inteiro inscrito no tronco. Habita o mundo como o último sobrevivente de uma linhagem antiga, tão antiga que assistiu ao desenho dos continentes, às montanhas que se ergueram e se desfizeram, às florestas que se sucederam como capítulos longos da história da Terra.

A linhagem a que pertence nasceu muito antes dos dinossauros caminharem sobre o planeta. A espécie atual não será tão antiga, mas carrega no corpo a morfologia desse passado remoto, como se guardasse consigo a lembrança viva de um mundo primordial.

Por isso lhe chamam fóssil vivo, não por estar presa ao passado, mas por o trazer consigo, com uma serenidade guardada na lentidão de quem vive para além das pressas humanas.

Pode viver mais de 1.000 anos, e alguns exemplares, em regiões da Ásia, ultrapassam largamente esse limiar de longevidade. Em Portugal, quem for passear no Jardim das Virtudes encontrará o exemplar mais antigo do país, uma árvore que parece manter a cidade do Porto num gesto de proteção discreta.

E do outro lado do mundo, no Japão, 6 ginkgos tornaram-se símbolo da resiliência humana e vegetal. Em Hiroshima, após a explosão atómica que devastou a cidade e ceifou mais de 140.000 vidas, estes ginkgos rebentaram de novo no ano seguinte, como se a natureza ali se recusasse a aceitar o fim e decidisse renascer. 

No presente, o ginkgo espalhou-se pelo mundo como árvore ornamental, pelo porte harmonioso, pela copa aberta ao céu e pela resistência a pragas e poluição. Quem caminha nas ruas ou parques pode reconhecê-lo pela arquitetura da copa e, sobretudo, pela singularidade das folhas.

Pequenas lâminas em forma de leque, com nervação dicotómica, um desenho tão invulgar entre as árvores modernas que parece obra de um artesão paciente. São folhas que guardam uma luz própria, mesmo antes de amarelecerem.

Mas nem tudo é leveza na vida desta árvore antiga. O ginkgo é uma espécie dióica, com exemplares masculinos e femininos. É nas fêmeas que repousa um segredo olfativo difícil de esquecer. Quando o outono avança e os ovários carnosos atingem a maturação, deixam-se cair no solo libertando um odor acre e persistente, um aroma tão intenso que parece escapar de uma gaveta fechada há décadas, onde peúgas usadas, que nunca foram lavadas, repousam esquecidas, sem que ninguém se atreva a decidir o seu fim.

É o ácido butírico, libertado pela polpa, que compõe esta assinatura indelével. Há beleza e lógica até neste odor extremo. Aquilo que ao ser humano parece repugnante terá sido, para vários animais, um convite. O cheiro forte foi provavelmente, em tempos pré-históricos, uma estratégia para os atrair, encarregando-os de dispersar as sementes.

A árvore, tão antiga como a própria evolução da Terra, encontrou assim uma forma engenhosa de perpetuar a descendência num mundo onde os seus parceiros originais já não existem.

E, contudo, por mais histórias que o ginkgo traga nos ramos, nenhuma delas ultrapassa a que o torna verdadeiramente único entre as árvores caducifólias. É no instante da queda das folhas que a árvore revela o seu maior segredo.

O ginkgo entrega-se ao outono como quem acata um pacto firmado há milhões de anos. As suas folhas não são agulhas nem escamas endurecidas, como as das coníferas clássicas. São lâminas largas, frágeis perante a geada. Para sobreviver, a árvore precisa de as abandonar. Mas fá-lo de uma forma tão precisa, tão antiga, tão perfeita, que parece uma coreografia e não uma mera resposta biológica.

Enquanto outras árvores deixam cair as folhas ao longo de semanas, num descompasso natural entre química e vento, o ginkgo trabalha em silêncio, na penumbra das horas. Na base de cada folha forma-se uma camada de abcisão, uma zona de células que dia após dia se reorganizam, afinam, criam uma fronteira.

A árvore prepara a despedida com a paciência de quem conhece o tempo. Não há pressa. É a própria estação que lhe molda o avanço, enquanto a luz declina e o frio aperfeiçoa, passo-a-passo, o trabalho minucioso da despedida.

E então chega aquele breve momento, que ninguém vê nascer, mas todos reconhecem depois. Os milhares de folhas, amadurecidas em uníssono, alcançam o limite da sua própria delicadeza. Basta um sopro mais frio trazido pela madrugada, para quebrar quase em toda a copa o ténue vínculo que ainda as prendia.

O frio não provoca o processo, apenas abre a porta que a árvore vinha a preparar há semanas. E num só gesto silencioso, como quem devolve ao mundo um tesouro sagrado, o ginkgo solta todo o seu ouro e abandona o outono. 

Num dia, a copa é densa, luminosa, cheia. No seguinte, o chão transforma-se num tapete dourado, um clarão breve, mas intenso, espalhado pela terra. Os ramos ficam nus como se a árvore tivesse exalado a última luz do ano. Não é dramatização. É exatidão biológica. É a precisão de uma espécie que aprendeu a viver afinada com os ritmos ancestrais do planeta.

Assim é o ginkgo. Uma presença antiga feita de pura quietude. Uma árvore que não deixa cair as folhas ao acaso. Espera o momento exato em que o seu corpo inteiro concorda que a estação mudou. E então deixa que o amarelo se desprenda quase todo de uma só vez, como se quisesse mostrar que a beleza pode ser, também ela, um ato final de perfeita sincronização.
 

 

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