Mandrágora - a mais humana das plantas
A mandrágora (Mandragora autumnalis) é uma espécie mediterrânica que permanece rente ao solo, surgindo no início do outono quando as primeiras chuvas quebram a secura estival e reativam a vegetação do sul do país.
Cresce em locais secos e luminosos, onde o calor parece não ter fim e o inverno chega apenas como um sopro. As suas folhas formam uma roseta larga e espessa, e as flores lilases abrem discretamente entre as pedras, quando a terra se torna fria e húmida.
O seu nome vem do grego antigo mandragoras, termo de origem discutida e que alguns autores aproximam do persa mardum giya, planta de homem. Desde a Antiguidade que esta designação evoca a forma humana das raízes, muitas vezes bifurcadas e retorcidas como membros de um corpo enterrado.
Talvez por isso a mandrágora tenha atravessado séculos envolta em superstição e fascínio, guardando na sua morfologia uma semelhança inquietante que o imaginário nunca deixou esquecer.
Nesta época do ano, nos poucos lugares onde ainda resiste, deve estar em floração, silenciosa e escondida, guardando o segredo de séculos. Esta é uma das plantas que mais gostaria de encontrar na natureza do nosso país.
Em Portugal continental, a mandrágora é rara e encontra-se confinada a pequenos refúgios do Alentejo e do Algarve. A Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental classifica-a como Em Perigo, com apenas nove núcleos populacionais conhecidos e cerca de 400 indivíduos maduros.
As populações estão isoladas, separadas por terrenos agrícolas e estradas, e ocupam uma área de apenas 60 km². Sobrevive em pousios, bermas de caminhos e margens de campos de sequeiro, onde o solo é básico, argiloso ou calcário. Estes lugares discretos, esquecidos pelo tempo e pela pressa, são os últimos refúgios da espécie em Portugal.
O Herbário da Universidade de Coimbra regista exemplares colhidos por Jules Alexandre Daveau em Grândola em abril de 1880 e por Heinrich Moritz Willkomm em Málaga em novembro de 1844, testemunhando a continuidade peninsular da espécie e a sua ligação profunda ao Mediterrâneo.
São memórias em papel que falam de uma planta antiga e de uma relação longa entre a terra e o homem. A mandrágora é uma herdeira de um passado mágico e científico.
Os herbários antigos, como o De Materia Medica de Dioscórides e o Hortus Sanitatis de Mainz, representavam-na com corpo humano e folhas como cabelos, sorridente e quase consciente de si, sinal do poder que lhe atribuíam.
Nessas ilustrações, a planta surge humanizada, como se possuísse alma própria. A iconografia medieval e renascentista perpetuou esta imagem híbrida, fundindo ciência e superstição, e deu à mandrágora uma forma imortal.
Nos textos bíblicos também é recordada. No Génesis, o termo hebraico dudaím é traduzido como mandrágoras, associadas à fertilidade e ao desejo, plantas que Lea e Raquel disputam como talismãs de amor. Essas referências moldaram a perceção simbólica da planta no mundo mediterrânico e explicam o seu prestígio nas culturas posteriores.
A etnobotânica da mandrágora é feita de ciência e superstição. Desde a Antiguidade que lhe atribuem propriedades medicinais e poderes místicos. A raiz concentra alcaloides tropânicos como a escopolamina, a hiosciamina e a atropina, substâncias capazes de atuar sobre o sistema nervoso e provocar sonolência, euforia ou delírio, conforme a dose.
Por isso foi usada pelos médicos gregos e romanos como anestésico rudimentar, sedativo e auxílio para induzir o sono, sempre com o risco de uma dose excessiva se tornar fatal. Acreditava-se também que promovia a fertilidade e curava esterilidades, crença que se espalhou pelo Mediterrâneo e atravessou séculos de tradição popular.
Mais do que os seus efeitos farmacológicos, foi a forma humana da raiz que alimentou o mito. As bifurcações lembram pernas e braços, como um corpo modelado pela terra, e essa semelhança deu origem a narrativas que misturam temor e fascínio.
Em várias regiões da Europa, as mandrágoras eram tratadas como pequenos seres domésticos, guardadas em cofres, lavadas em leite e alimentadas com vinho, na convicção de que protegiam a casa e traziam fortuna.
Os rituais de colheita revelam a força dessas crenças. Dizia-se que a planta gritava quando arrancada e que o seu grito podia matar. Para evitar esse destino, amarrava-se a raiz a um cão negro, afastando-se enquanto o animal a arrancava e sucumbia no lugar do homem. Neste imaginário, a mandrágora tornou-se símbolo de poder, morte e renascimento, uma fronteira tensa entre o sagrado e o profano.
Durante a Idade Média e o Renascimento, entrou nos unguentos e poções descritos em herbários como o Hortus Sanitatis ou o Le Livre des simples médecines.
Misturava-se com óleos e plantas narcóticas, e acreditava-se que as bruxas a aplicavam sobre o corpo antes dos seus voos noturnos. Surgia como remédio e feitiço, cura e perdição, mantendo o seu papel ambíguo entre medicina e magia.
Os seus fragmentos eram ainda usados como amuletos de fertilidade ou proteção, guardados em tecidos ou suspensos nas portas, prolongando o simbolismo da raiz antropomórfica.
Hoje, a ciência olha para a mandrágora com igual fascínio e prudência. Os alcaloides que outrora sustentaram a sua reputação mística são agora base de medicamentos modernos.
A atropina é usada em colírios oftalmológicos para dilatar as pupilas e tratar inflamações, a escopolamina previne enjoos e é administrada em adesivos transdérmicos, e a hiosciamina atua como antiespasmódico em vários contextos terapêuticos.
A farmacologia moderna confirmou a potência destes alcaloides tropânicos e reconheceu também o perigo que representam, lembrando que na mandrágora o remédio e o veneno são apenas expressões diferentes da mesma substância.
Em Portugal não existe qualquer utilização médica regulamentada desta planta e a investigação publicada sobre Mandragora autumnalis permanece sobretudo fitoquímica ou pré-clínica, desenvolvida maioritariamente no estrangeiro.
Ainda assim, estudos internacionais têm revelado atividades antioxidantes, antimicrobianas, antidiabéticas e antitumorais nos seus extratos, exploradas apenas em modelos experimentais.
Apesar desse potencial, a mandrágora continua fora de qualquer uso médico aprovado. A sua toxicidade, a janela terapêutica estreita e a ameaça que representa a colheita de populações naturais pequenas e vulneráveis explicam a prudência que hoje a envolve, entre a promessa e o risco, entre a ciência e a preservação.
Na literatura, mitologia e cinema a mandrágora aparece como símbolo primordial. Além das referências bíblicas, ressurge na cultura moderna em sagas como Harry Potter, onde as raízes gritam quando arrancadas, ecoando a lenda europeia, e são usadas em Herbologia na escola de Hogwarts como remédio que devolve a vida aos petrificados.
No cinema alemão o filme Alraune (1952) dá-lhe corpo humano e transforma-a em figura de sedução mortal. Na música, a banda Iron Maiden evoca-a na canção Moonchild, onde o grito da planta surge como símbolo de força e destruição, e o tema Mandrake Root, de Deep Purple, retoma o nome como metáfora de poder e feitiço.
A arte e o cinema modernos perpetuaram o mito. Em 2006, O Labirinto do Fauno, de Guillermo del Toro, devolveu a mandrágora ao imaginário contemporâneo. No filme, a mãe da protagonista, Ofelia, guarda uma pequena raiz em forma de feto submersa num prato de leite, alimentando-a com gotas de sangue.
A mandrágora transforma-se em símbolo de fertilidade, cura e proteção, um elo entre o humano e o mítico, entre a vida e a morte. A cena tornou-se uma das mais belas metáforas cinematográficas da relação ancestral entre o homem e a natureza.
E assim, entre música, mito e ficção, a mandrágora continua a atravessar épocas e linguagens, sempre presente no imaginário coletivo.
Desde criança, a mandrágora habita o meu imaginário. Nos anos oitenta via na televisão a série Os Defensores da Terra, e Mandrake, o mágico, era uma das personagens principais. O nome vinha da planta e do mito, e a figura elegante de Mandrake, o hipnotizador, parecia prolongar o encanto perigoso da raiz humana.
O comércio não regulado de sementes e raízes para fins esotéricos continua a ocorrer na internet, como ocorre com muitas plantas raras e simbólicas. Desaconselho a colheita ou o cultivo desta planta, recordando que as populações portuguesas são pequenas, fragmentadas e frágeis.
A colheita ameaça o equilíbrio ecológico e reduz as possibilidades de recuperação da espécie. O caminho mais prudente é o cultivo ex situ, em jardins botânicos ou centros de conservação, sob licenças científicas e fins educativos.
Não há programas exclusivos dedicados à proteção da mandrágora em Portugal, mas as ações de conservação da flora autóctone incluem a sua monitorização e proteção de habitat, especialmente nas zonas do Alentejo onde ainda subsiste.
Tenho muitos sonhos por cumprir, um deles seria criar em Portugal um jardim dedicado às plantas tóxicas e mágicas, inspirado no Poison Garden de Alnwick, no norte de Inglaterra. Este jardim, inaugurado em 2005 por Jane Percy, Duquesa de Northumberland, é uma das coleções botânicas mais visitadas do Reino Unido.
Guardado por portões de ferro negro, abriga mais de 100 espécies venenosas, incluindo cicuta, beladona, ricina e ópio. As visitas são sempre guiadas, e o público é advertido à entrada de que tocar ou cheirar algumas plantas pode ser fatal. A pedagogia do perigo transformou-se ali em arte e ciência, e o jardim tornou-se símbolo da curiosidade humana e da reverência pela natureza.
Recebe anualmente dezenas de milhares de visitantes e é hoje uma atração de fama internacional. Num espaço assim, a mandrágora teria o seu trono discreto, não pela sua fama sinistra, mas porque nela se cruzam o mito, a ciência e a beleza.
Vejo-me a descer um caminho de terra no Alentejo enquanto o sol se afunda atrás das azinheiras. O cheiro a terra molhada sobe do chão como um convite. Entre as ervas dobradas pelo vento, procuro a roseta que talvez ainda resista. Não sei se a encontrarei, mas continuo. É essa procura que me move.
E se um dia a vir, sei exatamente o que farei. Sentar-me-ei ao seu lado, em silêncio, como quem reencontra algo que sempre conheceu. Não a colherei. Ficarei apenas a contemplá-la. A mandrágora não precisa de ser minha para me pertencer. A sua beleza está em existir, em desafiar o desaparecimento, em sobreviver onde quase nada sobrevive.
Nesse instante, talvez perceba que o que procuro nela é o que procuro no mundo: algo que nos una à terra sem a possuir, algo que nos devolva a sensação de maravilha que fomos perdendo.
E então saberei que a mandrágora é mais do que uma planta rara. É o testemunho de uma memória antiga, onde mito e realidade se abraçam para nos recordar que o sagrado nunca desapareceu, apenas se escondeu onde menos olhamos.

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