O Azevinho e o Príncipe
Nas encostas sombrias onde a humidade se demora entre raízes ancestrais, como uma prece subterrânea, ergue-se o azevinho (Ilex aquifolium), eterno no seu verde que não se rende ao tempo. Em Portugal continental ele é relíquia e sentinela, remanescente de climas extintos, guardião de matas frescas onde o rumor do mundo cessa e dá lugar ao silêncio primordial da floresta.
Nas ilhas atlânticas outras vozes do mesmo género sussurram com ele. Na Madeira vive o perado (Ilex perado subsp. perado), mais macio na folha, mais moldado pela respiração húmida da Laurissilva.
Também nos Açores existe o seu eco botânico, o perado-dos-Açores (Ilex perado subsp. azorica), moldado por brumas e ventos oceânicos. Todos são fragmentos de uma linhagem antiga, dispersos como notas de um mesmo poema vegetal.
Em Portugal continental a distribuição desta árvore desenha uma mancha atlântica no Norte e Centro, encontrando refúgio nas serras húmidas, nos vales frescos, nos barrancos que guardam a sombra como se fosse um tesouro.
A Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental classifica a espécie como de Preocupação Menor, mas reconhece que alguns núcleos isolados permanecem vulneráveis, pela rarefação do habitat e pela pressão de origem humana.
Ao longo dos séculos, esta planta foi símbolo de poder. Os romanos associaram-lhe virtudes protetoras, os povos celtas viram nela um talismã contra a escuridão do inverno, presença sagrada nos bosques onde se celebrava o triunfo da vida sobre a noite mais longa. No Natal cristão, as folhas persistentes tornaram-se promessa de vida que renasce e os frutos brilhantes ecoaram a cor da esperança.
Esta mesma beleza simbólica, tão fundida na sensibilidade europeia, acendeu nas últimas décadas uma procura quase febril de ramos, sobretudo na quadra natalícia. As mãos humanas, movidas por um desejo antigo de trazer o verde para dentro de casa, colheram sem medida, arrancaram sem pensar, descarnaram exemplares seculares.
Assim, o encanto transformou-se em ferida. Muitos núcleos espontâneos foram mutilados, outros desapareceram, como se a própria floresta tivesse sido obrigada a apagar a sua luz para que a nossa brilhasse.
Por isso a lei protegeu a espécie cedo. O Decreto-Lei n.º 423 de 1989 ergueu-lhe um escudo legal e proibiu o corte, arranque, transporte ou venda de exemplares espontâneos em Portugal continental, admitindo apenas exceções muito restritas.
A tradição teve de aprender a conter a mão. Quem deseja ramos deve comprá-los a viveiristas credenciados, optando por plantas cultivadas legalmente e não colhidas na penumbra dos bosques. Assim a celebração não fere o que celebra e a memória da espécie permanece de pé na paisagem.
A árvore gosta de sombra luminosa, de solos frescos, profundos e ácidos, de brisas suaves que a mantenham desperta. Adapta-se bem ao jardim quando lhe damos o lugar certo, crescendo com a lentidão digna de quem vive séculos.
Tem um enorme talento enquanto ornamental. Existem variedades com folhas variegadas, salpicadas de creme, outras de verde quase negro, algumas de porte mais compacto e outras em que as margens se tornam menos armadas, deixando sobressair a elegância do contorno.
O azevinho divide-se entre machos e fêmeas, plantas distintas que dependem uma da outra para cumprir o seu ciclo. Nos indivíduos masculinos o pólen liberta-se ao movimento do ar e ao toque diligente dos insetos que percorrem as flores em busca de néctar, sendo estes o principal veículo de polinização.
As flores femininas, discretas e recetivas, esperam esse grão minúsculo vindo de uma planta masculina próxima, pois sem ele não haverá fecundação. Quando o pólen chega, inicia-se um processo lento e silencioso que culmina na formação dos frutos vermelhos que iluminam o inverno. A frutificação depende desta colaboração entre vento, insetos e proximidade entre plantas masculinas e femininas.
Há, contudo, exceções curiosas no vasto mundo das variedades cultivadas. Alguns cultivares selecionados ao longo do último século revelam comportamentos distintos daqueles que se observam nas populações silvestres.
Como o Ilex aquifolium ‘J.C. van Tol’, capaz de frutificar mesmo sem a presença de um macho por perto, e híbridos ornamentais, como Ilex cornuta ‘Burfordii’, conhecidos pela sua frutificação consistente quando cultivados isoladamente.
Esta frutificação deve-se, em grande parte, à partenocarpia, um processo biológico em que o fruto se desenvolve sem que ocorra a fertilização dos óvulos. No caso do género Ilex, como sugerido por estudos recentes, muitos destes frutos surgem após o simples estímulo do pólen, mas sem que haja fusão dos gâmetas, formando-se assim drupas estéreis, desprovidas de embrião. São frutos que imitam o ciclo reprodutivo, mas não o completam.
Estas variedades cultivadas, úteis para jardins pela sua frutificação fiável, não refletem o comportamento ancestral do azevinho nativo, que permanece inteiramente dependente da dança entre pólen, vento e insetos. São variações de jardim, exceções convenientes, mas estranhas ao compasso lento e rigoroso da espécie tal como existe na natureza.
As folhas brilhantes e coriáceas guardam segredos mais subtis do que a sua aparência permite adivinhar. Nas zonas ao alcance dos herbívoros, erguem espinhos nítidos, lâminas vegetais feitas para dissuadir mandíbulas.
À medida que a copa escapa aos dentes dos animais, essas armas abrandam, esbatem-se, desaparecem, como se a árvore finalmente respirasse sem a sombra da ameaça. Mas quando as mãos humanas insistirem em podá-la, impondo cortes sucessivos, ela responde como sempre respondeu à pressão do mundo à sua volta. Renova a couraça, faz nascer folhas armadas, devolve os espinhos aos lugares onde a vulnerabilidade voltou a existir.
Esta plasticidade defensiva, hoje revelada por estudos epigenéticos e morfológicos, mostra que a árvore não esquece. Guarda a memória do que a feriu e inscreve essa lembrança no contorno das folhas, como se o corpo vegetal escrevesse a sua própria história em cada margem afiada que cria.
As sementes, por sua vez, entregam-se a uma dormência profunda. Guardam dentro de si um embrião ainda incompleto, como uma promessa que precisa de tempo para aprender a ser árvore. Mantêm travões fisiológicos que as seguram no escuro da terra. Precisam de calor para começar a despertar e, depois, de frio para completar o seu renascimento.
Este ciclo de estratificações, quente e depois fria, dura meses, por vezes anos. A germinação pode levar entre 18 e 24 meses, como se cada semente quisesse repetir a lentidão do próprio azevinho. Só quando o embrião se torna inteiro, quando o frio lhe dá a ordem suave para avançar, é que rompe a casca e sobe, devagar, em direção à luz.
Sempre contei com o frigorífico como um aliado fiel, mestre a enganar as sementes, fazendo-as crer na chegada de um frio antecipado para que germinassem ao ritmo das minhas necessidades.
O potencial terapêutico desta árvore inclui compostos fenólicos, triterpenos e outros metabolitos com atividade antioxidante e anti-inflamatória.
Ensaios in vitro e em animais apontam para possíveis efeitos na proteção hepática e na modulação de parâmetros metabólicos, mas a evidência permanece preliminar e longe de qualquer recomendação clínica consolidada. Ainda assim, esta presença discreta de virtudes deixa-a no radar silencioso da investigação farmacognóstica.
O nosso azevinho tem um parente distante e exótico, a erva-mate (Ilex paraguariensis), espontânea em vários países da América-do-Sul, de cujas folhas e ramos se prepara uma das bebidas mais reconhecidas do mundo, o mate ou chimarrão. Os povos indígenas Guarani estão entre os primeiros a venerá-la e cultivá-la, num tempo em que a paisagem existia sem fronteiras e só a floresta ditava limites.
Mais tarde, missões jesuítas e produtores coloniais transformaram a planta numa cultura de grande importância económica na região do Paraná, do Paraguai e do norte da Argentina. Hoje a erva-mate é cultivada e colhida sobretudo nesses países, e a bebida circula pelo mundo, chegando a Portugal através de casas de chá, lojas especializadas e comunidades migrantes.
Rica em cafeína, teobromina e compostos antioxidantes, esta infusão amarga e vigorosa aquece os dias e cria comunhão. O mate é celebração, ritual, partilha, talvez por isso agrade tanto ao espírito humano.
No meu percurso enquanto viveirista e agricultor, tive o raro privilégio de cultivar esta planta protegida durante mais de duas décadas, propaguei milhares de azevinhos que hoje povoam parques e jardins do nosso país.
Numa das parcelas de cultivo, reservada à delicadeza tropical da erva-príncipe (Cymbopogon citratus), ergui uma sebe monumental de azevinhos-fêmea. Era uma muralha verde, firme e paciente, que amparava a fragilidade daquela gramínea tropical de metabolismo C4, feita para o calor e a luz intensa, uma criatura da estação quente que prospera quando as temperaturas altas dominam os dias.
Nos dias frios, porém, desfalece. Uma simples noite abaixo de zero basta para a queimar, porque o seu corpo vegetal foi moldado em climas onde o inverno quase não existe.
Protegida por essa fortaleza viva, a erva-príncipe cresceu ao ar livre, ali onde tantas vezes o frio lhe poderia roubar a vida. Foi essa barreira de azevinhos que me tornou um dos poucos produtores nacionais capazes de a cultivar nestas condições, desafiando o clima e confiando na sabedoria das árvores para resguardar uma planta que, de outro modo, jamais suportaria o rigor atlântico.
Entre os ramos de azevinho prosperavam famílias inteiras de várias espécies de aves, aliados famintos, sempre pronto a devorar quaisquer pragas que se quisessem instalar entre príncipes. Nunca tive de realizar qualquer tratamento nesta parcela de cultivo, que por sua vez agradeceu a proteção e produziu lotes para infusões e tisanas várias vezes premiados internacionalmente.
Que casamento extraordinário, azevinho e erva-príncipe! Esta sebe viva, com pouco mais de 10 anos de cuidado, superou os 7 metros de altura. É uma das plantações mais notáveis da minha vida.
Sob licença do ICNF, produzi e comercializei os seus ramos, oferecendo alternativas legais à procura natalícia. Fiz dessa produção um gesto de responsabilidade social. As coroas feitas com os ramos de azevinho ajudaram a comunidade a angariar milhares de euros para quem precisava. Cada ramo comercializado a partir de plantas cultivadas foi, para mim, também um ramo salvaguardado na natureza.
Falei desta árvore na televisão e em salas de aula, escrevi sobre ela, ensinei a respeitá-la. Conheço alguns exemplares de porte espantoso na natureza e em jardins urbanos, árvores fabulosas que guardam histórias mais longas do que muitas vidas humanas.
Hoje há também zonas do Parque Nacional da Peneda-Gerês onde novos projetos de restauro ecológico, como iniciativas de recuperação de bosques autóctones, começam a criar condições para que espécies de sombra e de montanha, entre as quais o azevinho, reforcem a sua presença.
O azevinho permanece como testemunho de resiliência e beleza, uma árvore que apenas deseja atravessar connosco o futuro, guardando na sua sombra a dignidade que o passado lhe confiou.



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