O plátano e a arquitetura do fresco
Mas basta demorar o olhar para perceber que o seu tronco malhado é mais do que casca. É pele viva, mapa de geografias sucessivas, mosaico de placas que se soltam como escamas luminosas e revelam camadas onde a luz repousa e o dia se demora. É uma pele que conta histórias de crescimento, de fogo solar, de noites frias, de anos húmidos e de verões secos.
O plátano-comum (Platanus × acerifolia) é um híbrido antigo, nascido do encontro improvável entre o Oriente e o Ocidente biogeográfico da Europa e da América. Vive connosco há séculos porque resiste ao que poucas árvores suportariam nas cidades. É um híbrido que carrega nas veias a resistência do Oriente e a robustez do Ocidente, como se tivesse sido criado de propósito para suportar o excesso humano.
Tolera o ruído metálico das ruas, o frio que desce pelas fachadas, a poeira que se acumula nas folhas como cinza de um fogo contínuo, o vento que se enrosca entre prédios, as cicatrizes de podas apressadas que ferem a madeira e expõem a alma do tronco. Mesmo assim cresce, abre a copa como quem abre um gesto de abrigo e oferece sombra larga onde o calor mais intenso se dissolve. Debaixo dele o calor abate-se, as sombras tomam forma, a cidade abranda.
Nos dias de sol cortante, quando o ar pesa como um muro de calor, o plátano permanece vigilante. As raízes, alimentadas pela humidade que o solo lhes oferece, sustentam a circulação discreta da água que sobe pelo tronco e chega à copa, onde se desfaz em frescura.
Nas folhas, essa água transforma-se numa neblina fina, impercetível aos olhos, mas evidente na pele, como um sopro que suaviza o calor. A transpiração converte radiação em alívio, calor em respiração leve, luz abrasadora em brisa suportável, num serviço silencioso que quase ninguém vê e ainda menos agradecem.
A cidade confia nele para ser refúgio. A sua copa densa baixa a temperatura do ar e das pedras que a rodeiam e, em certas praças, basta atravessar um corredor de plátanos para sentir o corpo regressar a uma temperatura ancestral, a um lugar onde o corpo recorda que nem sempre viveu rodeado de betão.
Sabe-se hoje que um único plátano adulto, bem enraizado e com água suficiente, pode devolver à atmosfera dezenas de litros de água por hora durante uma onda de calor. É um milagre físico, um ato de sobrevivência e de generosidade vegetal que se pressente em cada brisa que passa entre as folhas largas, com nervuras que lembram a mão aberta de um gigante.
Há quem só conheça o plátano através do incómodo que traz. Os pólenes que circulam na primavera são pequenos mensageiros de um diálogo antigo entre árvore e vento. Nas cidades, porém, o ar está carregado de químicos que se agarram a esses pólenes, alteram-lhes a superfície e tornam-nos mais agressivos para quem respira.
Dióxido de azoto e ozono mudam as proteínas do pólen e ampliam o seu efeito alérgico. É um drama que não nasce do plátano, mas do modo como vivemos dependentes de máquinas e cercados pela poluição que elas produzem.
Ainda assim, o plátano excede o incómodo que alguns lhe atribuem e a sombra generosa que todos lhe reconhecem. A quem se aproxima com atenção e curiosidade, a árvore revela perfumes que são quase um segredo.
Em certos dias de Outono, quando a humidade pousa leve nas folhas e o frio ainda não chegou, a copa liberta um aroma quente, feito de uma doçura íntima que mistura calor vegetal com a quietude das tardes douradas, um perfume que lembra o crepúsculo a pousar suavemente sobre a madeira.
Em alguns anos, também na primavera, antes de a frutificação se completar, esse sopro aromático emerge tímido, como um indício de festa que só o vento reconhece.
Poucos percebem de onde chega este perfume. Quase ninguém suspeita que uma árvore sem flor visível naquele momento seja capaz de perfumar o ar com tamanha delicadeza. Talvez por isso, quando o aroma se revela, o espanto instala-se sem esforço.
Em certos dias, sobretudo quando o calor e a humidade aceleram a vida microscópica nas folhas e frutos caídos, o ar junto aos plátanos pode carregar um odor a espirro ou halitose, por vezes desagradável.
É a matéria que se transforma, o ciclo natural da decomposição a manifestar-se no olfato, a outra face de uma árvore que nunca se entrega inteiramente ao previsível. Assim é o plátano, capaz de extremos que só o nariz mais atento reconhece e que fazem de cada passeio uma pequena viagem sensorial.
Os meus filhos chamam-lhe vaca da floresta. Não é metáfora ingénua. Há no tronco manchado algo de bovino e pacífico. Há no porte uma força lenta que acolhe e protege.
Foi com esta imagem que, desde muito pequenos, os ensinei a reconhecer um plátano, mesmo no inverno, quando a árvore se despe de tudo e fica apenas o desenho dos ramos a recortar o céu. As manchas vivas do tronco bastam para o denunciar. É assim que começa o encantamento botânico: a partir de uma mancha nasce uma história.
O plátano mastiga o ar pesado das cidades e devolve-nos outro ar possível. Une margens de ruas, constrói pontes invisíveis de sombra entre fachadas, cria corredores frescos por onde pássaros se aventuram e insetos encontram abrigo.
Filtra partículas que nos fariam mal. É uma espécie exótica, sim, mas habituou-se a viver connosco como mediador silencioso entre o betão e o céu, intérprete discreto entre o mundo mineral e o mundo biológico.
Entre a multidão de plátanos anónimos no nosso território, há alguns gigantes com nome próprio, quase personagens da história do país. No coração do Alentejo, em Portalegre, vive aquele que é hoje o plátano mais célebre e um dos mais antigos do país, o Plátano do Rossio, um gigante plantado em 1838 pelo médico e botânico José Maria Grande.
Quase dois séculos depois, a árvore continua de pé, com um tronco de vários metros de perímetro e uma copa tão larga que já foi descrita como a maior da Península Ibérica. A sua idade veneranda e a sombra imensa valeram-lhe o título de árvore de interesse público ainda em 1938, sendo lembrado em textos oficiais como a mais antiga árvore portuguesa com esta classificação. É uma espécie de patriarca verde, depositário de conversas, comícios, encontros e confidências que o tempo foi empilhando nos ramos.
Espalhados pelo país, outros plátanos assinalam a persistência desta aliança antiga entre cidade e árvore. Na Várzea de Colares, uma alameda de dezenas de plátanos foi recentemente classificada como arvoredo de interesse público, confirmando o valor monumental da espécie na paisagem histórica.
Junto ao Vouga, em Albergaria-a-Velha, dois plátanos com mais de um século, também classificados, estendem a copa sobre mesas de pedra e merendas de fim de tarde, como se fossem versões mais jovens, mas igualmente solenes, do velho colosso de Portalegre.
No Porto, os plátanos mais antigos não vivem muito longe dos lugares da minha infância. No Jardim João Chagas, a antiga Cordoaria, uma alameda de plátanos acompanha há mais de um século e meio o traçado triangular do jardim, herdeira da arborização oitocentista que ali transformou um terreiro de cordoeiros num passeio público romântico.
Muitos foram podados, alguns substituídos, outros tombaram em temporais, mas o alinhamento persiste como um túnel de sombra que atravessa gerações de portuenses.
Mais acima, na Quinta da Macieirinha, um plátano-comum com mais de cem anos domina o jardim em socalcos, abrindo a copa sobre as fontes de granito e a vista para o Douro, como se quisesse lembrar discretamente que o Porto também tem os seus velhos gigantes vegetais, tão antigos e eloquentes como qualquer fachada de pedra.
Quem recolher uma folha caída, ou um fruto ainda fechado, entra nesse pacto. O cheiro que permanece nos dedos é uma fração tímida do perfume que a árvore liberta quando a estação acerta na sua alquimia.
Há dias em que o aroma doce segue connosco no regresso a casa e outros em que o odor agreste nos lembra que tudo o que vive também se transforma. Assim aprendemos que o plátano não é uma árvore indiferente. É um ser colossal que respira, transpira, sofre, alivia, cura, filtra, perfuma e altera o clima à pequena escala, enquanto nos observa passar debaixo da sua copa.
No fundo, o plátano é uma presença que ensina. Mostra-nos como a ciência, a memória e o olfato se cruzam num só organismo. Recorda-nos que mesmo as árvores que tomamos por comuns escondem mistérios que só revelam a quem caminha devagar e respira com atenção.
E confirma que, no coração das cidades, mesmo nas mais duras, ainda existem gigantes capazes de criar frescura, perfume e espanto no mesmo dia, se tivermos a delicadeza de reparar.
A sua natureza foi talhada para crescer com amplitude, para desenhar copas largas que respiram céu e raízes que procuram o subsolo com a firmeza tranquila de quem precisa de território para crescer inteiro. Quando plantado onde a terra lhe dá margem, torna-se um colosso pacífico que protege quem passa e sustenta a frescura das ruas.
Durante décadas, o crescimento apressado das cidades ignorou este requisito elementar. Muitos plátanos foram enfiados em canteiros exíguos, encostados a fachadas, comprimidos entre arruamentos, condenados desde o início a viver menos como árvores e mais como obstáculos.
E o que nasce sem espaço acaba invariavelmente nas mãos das podas severas, daquelas intervenções que cortam mais do que ramos, cortam a dignidade da forma e a integridade da madeira.
Assim surgiram as mutilações que tantos conhecem: copas reduzidas a torres amputadas, ramos transformados em cotos, troncos feridos por cortes reincidentes que abrem portas a fungos, podridões, fraquezas estruturais. Não foi o plátano que falhou. Foi o planeamento que o esqueceu.
E, esquecendo-o, alimentou durante anos uma prática que ainda hoje se vê, uma espécie de violência urbana cometida em nome de uma gestão que não soube antecipar o tamanho da vida que estava a plantar.
Por isso, cada novo plátano exige mais do que boa vontade. Exige visão. Exige terreno suficiente para que a árvore cresça com a forma que a natureza lhe deu. Exige o reconhecimento de que uma árvore não deve ser moldada à medida da pressa humana, mas integrada num desenho que a respeite.
Só assim as cidades deixarão de podar para remediar erros e passarão a plantar para evitar feridas. E só então o plátano poderá cumprir aquilo que sempre prometeu: ser sombra, ser frescura, ser presença íntegra no coração das ruas.

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