Bolotas e a soberania alimentar

Imagine-se perante um carvalho. Feche os olhos. Respire o seu aroma de madeira antiga. Volte a abri-los e imagine agora uma plantação viva, extensa, ondulante, ocupando dezenas, centenas, milhares de hectares. Não para produzir madeira. Não para adornar paisagens.

Mas para alimentar seres humanos e animais, como um grande pomar de troncos robustos e copas largas, uma verdadeira cultura agroflorestal de longa duração, tão portuguesa como o pão que nos acompanha desde sempre.

A provocação é simples e poderosa. Sabia que as bolotas de várias espécies de Quercus são um dos alimentos mais antigos dos nossos antepassados ibéricos?

A arqueologia confirma o seu uso desde a Pré-História. Em inúmeros sítios escavados por toda a Península Ibérica surgem bolotas carbonizadas, utensílios de trituração e vestígios de armazenamento que revelam uma prática alimentar antiga e persistente, a balanofagia, o consumo humano de bolotas.

Durante milénios, muito antes de o trigo ou o centeio moldarem as primeiras civilizações agrícolas, as bolotas foram alimento quotidiano, reserva energética e sustento das comunidades que habitavam estes territórios. Era a comida que a terra oferecia sem exigir arroteias, irrigação ou lavoura, um recurso generoso que marcou de forma profunda a nossa história alimentar.

Séculos mais tarde, quando chegaram ao continente novas culturas vindas de longe, a batata trazida das Américas, o milho dourado dos conquistadores, o arroz que viria a transformar os campos alagados do Sul, as bolotas já tinham alimentado gerações incontáveis. Foram sustento, reserva, pão e companhia desde tempos imemoriais, muito antes de qualquer um destes alimentos assumir o protagonismo que hoje lhes reconhecemos.

A história repete-se em ciclos. A bolota, que alimentou os nossos antepassados desde a Pré-História, voltou a ser tábua de salvação em tempos de privação. Nos montados e carvalhais do século XX, sobretudo durante as décadas marcadas pela Guerra Civil Espanhola, pela Segunda Guerra Mundial e pela pobreza extrema no meio rural, muitas famílias alentejanas sobreviveram graças a ela.

A memória oral recolhida no Alentejo é clara e profundamente viva. Gente que apanhava bolota nos montados onde os porcos pastavam, crianças que a comiam como conduto da escola, mulheres que a cozinhavam com arroz, feijão ou couve, homens que enchiam sacos durante a noite para vender aos compradores ambulantes. O fruto seco que hoje olhamos com desatenção foi, durante séculos, pão de vida.

A diversidade das espécies de Quercus portuguesas permitiu esta relação profunda. Temos o sobreiro (Quercus suber), soberano das terras mais atlânticas, e a azinheira (Quercus rotundifolia), resistente às amplitudes térmicas do interior. No Norte surgem os carvalhais de folha caduca, com o carvalho-alvarinho (Quercus robur), o carvalho-português (Quercus faginea) e o carvalho-negral (Quercus pyrenaica). Todas estas espécies produzem bolotas comestíveis, embora com características distintas.

A ciência confirma aquilo que a tradição sempre soube. A bolota de azinheira é, em geral, a mais doce e a menos adstringente, graças ao seu teor mais reduzido de taninos, o que a torna naturalmente mais fácil de consumir e é hoje uma das espécies reconhecidas para consumo humano no espaço europeu.

As restantes espécies, embora igualmente nutritivas, pedem cuidados de preparação, sobretudo a remoção dos taninos que lhes conferem amargor. Assim surgem técnicas antigas para retirar os taninos e devolver doçura ao fruto, como a lixiviação em água corrente durante dias, a cozedura prolongada ou a desidratação lenta, que transformam a dureza inicial num alimento delicado e saboroso.

Cada árvore é um mundo. Mesmo dentro da mesma espécie, a variabilidade genética faz com que existam árvores particularmente doces, conhecidas localmente e procuradas geração após geração. É este diálogo entre diversidade natural e conhecimento humano que mantém viva a arte de comer bolota.

Os saberes tradicionais são um património delicado. No passado, sabiam conservar as bolotas durante todo o ano, usando técnicas engenhosas que hoje reaprendemos com surpresa. Avelavam-nas (processo natural de desidratação lenta e controlada). Guardavam-nas em arcas de madeira, virando-as regularmente para evitar humidades, permitindo que murchassem e ganhassem doçura.

Fumavam-nas na chaminé, em cestos feitos de rebentos de oliveira, durante semanas, obtendo um fruto seco de sabor profundo, durável e nutritivo. Cozinhavam-nas em sopas, em pastéis, em bolos e ainda preparavam um “café” de bolota torrada, muito apreciado.

Mas o século XXI trouxe algo novo. A ciência voltou a escutar a tradição e empresas portuguesas, inspiradas nos antigos modos de fazer, começaram a resgatar a bolota e a transformá-la em alimentos modernos, saudáveis e sustentáveis.

Os estudos realizados em Portugal demonstram o seu potencial nutricional. Revelam que as bolotas são ricas em hidratos de carbono complexos e apresentam teores interessantes de ácido oleico e linoleico, bem como de antioxidantes, vitamina E e compostos fenólicos.

Não contêm glúten, o que as torna acessíveis a mais pessoas, e possuem amidos que conferem às massas uma textura estável e qualidades tecnológicas muito apreciadas na panificação e na pastelaria.

A investigação conduzida pela Universidade do Porto, pela Universidade de Évora e por equipas multidisciplinares de agroecologia e tecnologia alimentar tem vindo a caracterizar várias espécies e a validar cientificamente o que a tradição já sabia. A bolota é um alimento completo, versátil e seguro.

O trabalho pioneiro da Herdade do Freixo do Meio marcou um antes e um depois na fileira contemporânea da bolota. Em 2008 surgiu ali o primeiro produto moderno transformado a partir deste fruto. A partir desse gesto inaugural nasceu também uma narrativa de regeneração ecológica, de economia circular, de valorização do montado e de inovação com sentido.

Outras empresas seguiram o caminho. Hoje encontramos farinhas de bolota, bolotas desidratadas e descascadas, bebidas vegetais, compotas, cremes de barrar, pastas salgadas, bombons, biscoitos, broas, pães e infusões.

A farinha de bolota fina e estável, produzida com processos de secagem controlada, permitiu a padronização de receitas e abriu portas à exportação. Hoje, algumas empresas portuguesas exportam produtos de bolota para vários países europeus, do pão às farinhas, dos biscoitos às compotas, revelando o potencial económico desta fileira.

Está demonstrado que as espécies Quercus faginea, Quercus rotundifolia, Quercus suber e Quercus pyrenaica produzem bolotas comestíveis e nutricionalmente relevantes. As diferenças na composição destas espécies ampliam as possibilidades culinárias e tornam a bolota um ingrediente versátil para explorar novos caminhos gastronómicos.

Mas o caminho da bolota não se esgota na ciência nem na economia. Estende-se para lá disso, porque é também uma proposta ecológica e uma decisão estratégica. Num país que importa mais de metade dos alimentos que consome, torna-se urgente criar alternativas sólidas e de longo prazo que reforcem a soberania e a resiliência alimentar.

É fundamental promover alimentos ajustados ao clima mediterrânico, capazes de suportar a seca, crescer sem irrigação intensiva, regenerar solos e dar estabilidade aos ecossistemas.

Os carvalhos respondem a estas questões com uma sabedoria antiga. São árvores de elevado valor ecológico, estruturantes do território e capazes de produzir alimento durante décadas ou até séculos, mesmo em condições adversas.

Imaginemos, então, montados e carvalhais multifuncionais, concebidos como verdadeiros pomares silvestres. Sistemas agroflorestais que produzem proteína vegetal, gordura saudável, fibra e antioxidantes, enquanto sequestram carbono, protegem o solo, aumentam a infiltração de água e preservam a biodiversidade.

Um país onde a bolota é novamente ingrediente quotidiano, base de farinhas, pães, cafés, cremes, bebidas e doces. Escolas a ensinar as crianças a reconhecer as diferentes espécies de carvalhos e a transformar bolotas. Imaginemos chefs a reinventar a culinária ibérica a partir de um alimento milenar.

Os projetos em curso vão nesse sentido. Existem grupos de investigação dedicados à valorização das bolotas do género Quercus, projetos de mapeamento genético, estudos sobre tecnologias de processamento e iniciativas de economia circular. Há também esforços que recuperam práticas antigas para lhes dar utilidade contemporânea, aproximando o saber tradicional da investigação mais recente, criando oportunidades para o desenvolvimento rural.

Empresas emergentes integram a bolota em cadeias de valor locais, reforçando a economia dos montados e carvalhais, enquanto alguns agricultores ensaiam modelos de recolha, secagem e transformação com baixo impacto energético.

A bolota não é apenas alimento. É proposta. É caminho. É memória e futuro. É ferramenta de resiliência num tempo em que as cadeias de distribuição globais se mostram vulneráveis.

É recurso abundante num país que já foi dominado por carvalhais e que pode voltar a ser, com inteligência, cuidado e visão ecológica. É oportunidade para criar sistemas alimentares verdadeiramente mediterrânicos, adaptados ao nosso clima, à nossa história e à nossa cultura.

Talvez seja este o momento de olhar para os carvalhos com outros olhos. Não apenas como sombra ou madeira. Mas como alimento. Como soberania. Como resiliência. Como promessa de um país que se reencontra com as suas raízes para garantir o seu futuro.
 

 

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