Entre o pó e o preconceito
Em março de 2022 escrevi um texto no meu blogue e redes sociais sobre o tema que é hoje publicado no Diário de Notícias: Como as poeiras do Saara podem ajudar os solos agrícolas: “Não trazem só riscos, mas também um grande potencial".
Foi talvez a publicação mais viral de todo o meu percurso profissional, partilhada milhares de vezes e republicada por vários órgãos de comunicação em Portugal. Contribuiu para acalmar muitas pessoas, assustadas com o fenómeno, mas foi também terrível para mim, porque fui enxovalhado em certos meios académicos, retratado publicamente, acusado de espalhar informação falsa.
Só mais tarde percebi, para mal dos meus pecados, que muitos desses académicos, alguns deles catedráticos, com responsabilidades sérias no campo científico, nem sequer faziam ideia que estas nuvens de pó servem de combustível para a floresta amazónica.
Atravessam regularmente o oceano Atlântico, carregadas de fósforo essencial à enorme biodiversidade, já que nos solos tropicais todo o que existe é facilmente lixiviado pela chuva frequente.
Durante demasiado tempo olhámos para o céu pintado de laranja apenas como um incómodo, uma ameaça à saúde pública, um episódio meteorológico indesejado que suja carros e toldos. Esquecemo-nos de perguntar de onde vem essa poeira, o que transporta, que histórias geológicas e biológicas carrega consigo.
Durante demasiado tempo olhámos para o céu pintado de laranja apenas como um incómodo, uma ameaça à saúde pública, um episódio meteorológico indesejado que suja carros e toldos. Esquecemo-nos de perguntar de onde vem essa poeira, o que transporta, que histórias geológicas e biológicas carrega consigo.
O deserto do Saara não é apenas um mar de areia estéril. É a memória mineral de antigos lagos, de solos outrora férteis, de ciclos climáticos longos que deixaram fósforo, cálcio, ferro e oligoelementos finamente moídos à mercê do vento. Quando essas partículas chegam aos nossos campos, às nossas florestas, aos nossos oceanos, não chegam vazias.
A ciência internacional conhece este fenómeno há décadas. Sabe-se que uma parte significativa do fósforo que sustenta a Amazónia não nasce na floresta, chega do outro lado do Atlântico, vinda de África.
A ciência internacional conhece este fenómeno há décadas. Sabe-se que uma parte significativa do fósforo que sustenta a Amazónia não nasce na floresta, chega do outro lado do Atlântico, vinda de África.
Sabe-se também que o ferro transportado nestas poeiras alimenta o fitoplâncton marinho, base invisível de cadeias alimentares inteiras e regulador silencioso do clima. Nada disto é misticismo nem poesia ingénua. É ecologia em estado puro, feita de ligações improváveis e escalas planetárias.
O que me entristeceu na altura não foi a crítica, essa faz parte do caminho de quem comunica ciência fora dos corredores fechados. O que me custou foi perceber como ainda há uma visão fragmentada, redutora, incapaz de integrar processos ecológicos complexos, sobretudo quando estes não cabem facilmente numa caixa disciplinar.
O que me entristeceu na altura não foi a crítica, essa faz parte do caminho de quem comunica ciência fora dos corredores fechados. O que me custou foi perceber como ainda há uma visão fragmentada, redutora, incapaz de integrar processos ecológicos complexos, sobretudo quando estes não cabem facilmente numa caixa disciplinar.
Falar de solos é falar de atmosfera, de oceanos, de história climática, de microorganismos invisíveis e de tempo profundo. Ignorar isso é empobrecer o debate e, pior ainda, empobrecer as soluções.
Por isso esta notícia não é apenas uma validação pessoal. É um sinal de maturidade científica. É a prova de que começamos finalmente a olhar para os solos agrícolas como sistemas vivos, abertos, ligados a processos globais.
Por isso esta notícia não é apenas uma validação pessoal. É um sinal de maturidade científica. É a prova de que começamos finalmente a olhar para os solos agrícolas como sistemas vivos, abertos, ligados a processos globais.
Num país com solos pobres, frequentemente exaustos por décadas de uso intensivo e pouca matéria orgânica, compreender o papel destas deposições naturais pode ser decisivo. Não para romantizar o fenómeno nem ignorar os riscos reais para a saúde humana, mas para o integrar num conhecimento mais amplo, mais honesto, mais ecológico.
Talvez agora possamos falar das poeiras do Saara sem medo do ridículo, sem sobranceria académica, sem dogmas. Talvez possamos aceitar que a natureza funciona em rede e que, por vezes, a fertilidade de um solo em Portugal começa muito longe, algures num antigo fundo lacustre africano, levantado pelo vento e confiado ao céu.
Talvez agora possamos falar das poeiras do Saara sem medo do ridículo, sem sobranceria académica, sem dogmas. Talvez possamos aceitar que a natureza funciona em rede e que, por vezes, a fertilidade de um solo em Portugal começa muito longe, algures num antigo fundo lacustre africano, levantado pelo vento e confiado ao céu.

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