Espinafres, mitos e identidades roubadas

Hoje comi uma salada de espinafres, dos verdadeiros, daqueles com S grande (Spinacia oleracea).

Sem exagero, costuma dizer-se que os seus princípios ativos são tantos que substituem meia farmácia. A expressão é figurativa, mas assenta num fundamento real. Esta hortaliça de folha verde-escura é rica em vitaminas, minerais e compostos bioativos, destacando-se o cálcio, o fósforo e um conjunto apreciável de micronutrientes essenciais ao bom funcionamento do organismo.

Convém, no entanto, não confundir riqueza com disponibilidade. O espinafre contém níveis elevados de oxalatos, que se ligam a minerais como o ferro e o cálcio, formando compostos insolúveis. O resultado é simples e pouco inspirador. Estes minerais passam pelo nosso metabolismo sem grande proveito, pois a sua absorção fica seriamente limitada. 

É por isso que o espinafre não deve ser cozinhado nem consumido em simultâneo com alimentos ricos em cálcio, sob pena de se perder boa parte do valor nutricional de ambos. Uma daquelas ironias da natureza em que o excesso de virtude se transforma em limitação. 

Por outro lado, sendo o ferro de origem vegetal difícil de absorver, faz todo o sentido que o espinafre seja acompanhado por alimentos ricos em vitamina C, capazes de melhorar essa absorção.

Podem ser consumidos frescos, crus, sem qualquer problema, desde que jovens e bem lavados. Em salada, conservam melhor a vitamina C e parte dos folatos, nutrientes sensíveis ao calor, contrariando a ideia feita de que só o espinafre cozinhado é seguro ou adequado. Como quase tudo na alimentação, o segredo não está em evitar, mas em saber escolher, preparar e combinar.

Um dos mitos urbanos mais persistentes da história recente fez parte da minha infância. Popeye, o marinheiro de antebraços desproporcionais, cresceu à custa de latas de espinafres alegadamente ricos em ferro. A realidade é menos heroica, e tem mais de tipografia do que de músculo.

O espinafre não é particularmente rico em ferro e, mesmo o que contém, é pouco aproveitado pelo organismo. O mito nasceu no século XIX, quando o químico alemão Erich von Wolf, em 1870, publicou valores de ferro para o espinafre que acabaram por circular com um erro decimal, como se fossem dez vezes superiores aos reais.

O deslize propagou-se pela literatura científica e popular, atravessou décadas, guerras e gerações, e ganhou vida própria, alimentando músculos imaginários e crianças obedientes à mesa.

O que vem a seguir pode deixar alguns leitores genuinamente surpreendidos. Há décadas que os mercados nos habituaram a um espinafre impostor, um caso sério e persistente de usurpação de identidade botânica.

Aproveitou-se de uma geração de consumidores distraídos, mais atenta a outras causas do que à verdade no prato, e um falso pretendente entrou em cena, apresentado com naturalidade e sem levantar suspeitas. Chamam-lhe espinafre-da-Nova-Zelândia ou falso-espinafre (Tetragonia tetragonoides). 
 
Num ápice, usurpou o trono outrora ocupado por Spinacia oleracea e empurrou-o para o canto menos nobre das hortaliças, embaladas em plástico, lavadas e prontas a consumir, aquilo a que a indústria chama Quarta Gama. Não se faz.

O espinafre-da-Nova-Zelândia é, na verdade, outra espécie, outra família e outra história, apesar do nome conveniente e da aparência enganadora.

Do ponto de vista agrícola, o verdadeiro espinafre também não facilita a vida a ninguém. Planta anual, de ciclo curto e sensível ao calor, permite apenas dois a três cortes antes de espigar e perder qualidade. Produz menos, exige mais atenção e, por isso mesmo, acaba por ser mais caro. Talvez seja essa uma das razões pelas quais a maioria dos urbanos e uma boa parte dos rurais raramente o consome.

Já o espinafre-da-Nova-Zelândia produz em abundância, tolera bem o calor e permite colheitas prolongadas. Foi, por isso, tentador para agricultores e mercados recorrerem a esta espécie mais generosa e menos exigente, sobretudo em contextos onde o espinafre verdadeiro se mostra caprichoso.

O lapso passou despercebido à maioria. Mas o paladar não se deixa enganar com tanta facilidade. O sabor é diferente, a textura também, e a composição nutricional, como não podia deixar de ser, não coincide com a do espinafre genuíno. Sabe distinguir entre o legítimo e o usurpador?

Uma confusão destas talvez fizesse Popeye esmurrar o Brutus responsável por tamanha ousadia. Isto se o famoso músculo do marinheiro ainda crescesse como antigamente. Parece que já não. A idade não perdoa, nem aos heróis de banda desenhada.

O espinafre verdadeiro deve ser semeado no final do verão e durante o outono, sobretudo entre agosto e outubro, ou então no final do inverno e início da primavera, entre fevereiro e abril. São estas as janelas em que encontra temperaturas frescas e dias ainda relativamente curtos, condições em que cresce com elegância, produz folhas tenras e adia o espigamento. 

Já o espinafre-da-Nova-Zelândia prefere claramente a primavera e o início do verão, sendo habitualmente semeado entre abril e junho, quando o frio já não ameaça e o calor lhe permite mostrar toda a sua exuberância. 

Convém, no entanto, semeá-lo com juízo. Em muitas hortas e jardins, sobretudo em zonas litorais e insulares, adapta-se com tal facilidade que pode escapar ao controlo e comportar-se como espécie invasora. 

Semear é sempre um gesto de esperança, mas saber escolher o que se semeia é também um ato de responsabilidade. Que 2026 venha com 
sábias decisões e melhores colheitas.
 

Spinach, myths, and stolen identities

Today I ate a spinach salad, the real kind, the one with a capital S (Spinacia oleracea).

Without exaggeration, people often say its active principles are so many they could replace half a pharmacy. The phrase is figurative, but it rests on something real. This dark green leafy vegetable is rich in vitamins, minerals, and bioactive compounds, with calcium, phosphorus, and an appreciable set of micronutrients essential to the body’s proper functioning standing out.

It is worth noting, however, that richness is not the same as availability. Spinach contains high levels of oxalates, which bind to minerals such as iron and calcium, forming insoluble compounds. The result is simple and not especially inspiring. These minerals pass through our metabolism with little benefit, because their absorption is seriously limited.

That is why spinach should not be cooked or eaten at the same time as foods rich in calcium, otherwise a good part of the nutritional value of both will be lost.

On the other hand, because iron of plant origin is hard to absorb, it makes perfect sense to pair spinach with foods rich in vitamin C, which can improve that absorption.

Spinach can be eaten fresh and raw with no problem, provided the leaves are young and well washed. In salads, it preserves vitamin C and some of the folates better, nutrients that are sensitive to heat, challenging the received idea that only cooked spinach is safe or appropriate. As with almost everything in nutrition, the secret is not to avoid, but to know how to choose, prepare, and combine.

One of the most persistent urban myths of recent history was part of my childhood. Popeye, the sailor with disproportionate forearms, grew strong on tins of spinach allegedly rich in iron. Reality is less heroic, and has more to do with typography than with muscle.

Spinach is not particularly rich in iron and, even where it contains it, our bodies make limited use of it. The myth was born in the nineteenth century, when the German chemist Erich von Wolf, in 1870, published iron values for spinach that ended up circulating with a decimal error, as if they were ten times higher than the real ones.

The slip propagated through scientific and popular literature, crossed decades, wars, and generations, and took on a life of its own, feeding imaginary muscles and obedient children at the table.

What comes next may genuinely surprise some readers. For decades, markets have accustomed us to an impostor spinach, a serious and persistent case of botanical identity theft.

A generation of distracted consumers was taken advantage of, more attentive to other causes than to truth on the plate, and a false claimant stepped onto the stage, presented as if it were perfectly normal, without raising suspicion. They call it New Zealand spinach, or false spinach (Tetragonia tetragonoides). 
 
In the blink of an eye, it usurped the throne once occupied by Spinacia oleracea and pushed true spinach into the less noble corner of vegetables, sealed in plastic, washed and ready to eat, what the industry calls “Fourth Range” produce (fresh cut, ready to eat). It’s just not on.

New Zealand spinach is, in fact, another species, another family, and another story, despite the convenient name and the misleading look.

From an agricultural point of view, true spinach does not make life easy for anyone. An annual plant with a short cycle and sensitive to heat, it allows only two or three cuts before it bolts and loses quality. It yields less, demands more attention, and for that very reason ends up being more expensive. Perhaps that is one reason why most urban dwellers and a good part of rural people rarely eat it.

New Zealand spinach, by contrast, produces abundantly, tolerates heat well, and allows prolonged harvesting. It was therefore tempting for farmers and markets to turn to this more generous and less demanding species, especially where true spinach proves capricious.

Most people never noticed the mix up. But the palate is not so easily deceived. The flavour is different, the texture too, and the nutritional composition, as it could not be otherwise, does not match that of genuine spinach. Can you tell the legitimate plant from the usurper?

A confusion like this might have made Popeye punch the Brutus responsible for such audacity. If the sailor’s famous muscle still grew as it once did. Apparently, it doesn’t. Age spares no one, not even comic book heroes.

True spinach should be sown in late summer and throughout autumn, especially between August and October, or else in late winter and early spring, between February and April. These are the windows when it finds cool temperatures and still relatively short days, conditions in which it grows with elegance, produces tender leaves, and postpones bolting.

New Zealand spinach, on the other hand, clearly prefers spring and early summer, and is usually sown between April and June, when cold is no longer a threat and warmth allows it to show all its exuberance.

Even so, it should be sown with good judgement. In many vegetable plots and gardens, especially in coastal and island regions, it adapts so easily that it can escape control and behave as an invasive species.

Sowing is always a gesture of hope, but choosing what we sow is also an act of responsibility. May 2026 arrive with wiser decisions and better harvests.




 

Share this:

CONVERSATION

0 comentários: