Feminino de hortelão

Na viagem de regresso do Natal em família surgiu uma dúvida pertinente. A palavra hortelão terá feminino? Se sim, qual será? De imediato se fizeram apostas. Entusiasmei-me de imediato com a possibilidade de ser hortelã. A Maria sugeriu horteloa e o Francisco hortelona. O dicionário fez esmorecer o meu entusiasmo. O feminino de hortelão é horteloa. Confesso que nunca a tinha ouvido antes. Haverá quem a use?

Hortelão é a pessoa que cultiva hortas, que trabalha a terra em pequena escala, cuidando de legumes, ervas e saberes transmitidos por repetição e observação. Horteloa é o seu feminino lexicalmente consagrado, discreto, quase invisível. A palavra significa mulher que cultiva ou trata das hortas e também mulher do hortelão. 
 
Não é um neologismo nem uma invenção moderna, mas a sua presença nos dicionários portugueses é relativamente recente nas versões atuais em linha, o que ajuda a explicar o seu estranho estatuto de palavra existente e, ao mesmo tempo, desconhecida. Existe, mas vive à margem, como tantas mulheres que trabalharam a terra sem nome próprio.

Numa rápida pesquisa encontrei outras formas femininas igualmente interessantes e pouco vulgares no léxico dos dias de hoje. Palavras que existem porque existiram pessoas reais a desempenhar essas funções, mesmo que a língua contemporânea tenha escolhido esquecê-las.

Lavrador é quem lavra a terra, quem a abre, a revolve e a prepara para semear. Lavradeira é a mulher que se dá à lavoura, a camponesa, a mulher do campo. Nos dicionários surge não apenas como feminino de lavrador, mas como substantivo autónomo, carregado de vida rural, de mãos calejadas e dias longos. É uma palavra com corpo social próprio.

Mondador é quem faz a monda, quem limpa as culturas das plantas indesejadas. Mondadeira é a mulher que trabalha nas mondas. O termo existe como entrada própria e remete para um trabalho coletivo, repetitivo, feito muitas vezes em grupo, curvado sobre a terra. A palavra guarda a memória desse gesto.

Semeador é quem semeia, quem lança a semente à terra, mas é também o nome da máquina agrícola que executa esse gesto de forma mecanizada. Semeadora é o feminino e designa igualmente a pessoa e o engenho. As duas palavras servem tanto para o corpo humano como para a máquina. A ambiguidade é reveladora. O gesto manteve o nome, mesmo quando o corpo que o fazia foi sendo progressivamente substituído pelo objeto.

Ceifeiro é quem ceifa os cereais. Ceifeira é a mulher que ceifa e é também uma máquina destinada ao mesmo fim, sinónima de segadeira. A palavra acumula sentidos e atravessa campos distintos, do trabalho manual à mecanização agrícola, mostrando como o feminino permaneceu na língua mesmo quando a prática se transformou. 
 
Não é por acaso que a morte é frequentemente ilustrada no cinema, na animação e nas artes visuais como uma silhueta envolta numa túnica, empunhando uma ceifeira, imagem simbólica que associa o gesto de ceifar ao fim do ciclo da vida.

Jornaleiro é quem trabalha à jorna, pago ao dia. Jornaleira é a mulher que vive desse trabalho diário e instável. O termo traz consigo uma dimensão social forte, associada à precariedade e ao trabalho rural sazonal.

Caseiro é quem toma conta de uma propriedade rural. Caseira é o feminino e designa a mulher ligada à gestão quotidiana da casa e da quinta. Não é apenas um papel doméstico. É uma função agrícola e organizativa, reconhecida na língua. Caseiro e caseira são também, em sentido mais amplo, aquilo que é feito em casa, de forma artesanal, sem indústria nem pressa, uma qualidade que a palavra transporta consigo como valor cultural.

Algumas destas palavras estão a desaparecer porque os tempos são outros e as formas de trabalhar a terra também mudaram. O mundo rural já não é o mesmo e a língua acompanha essa transformação, deixando cair certos termos enquanto procura outros. 
 
Hoje, mais do que recuperar palavras antigas, precisamos de criar novas palavras e novos sentidos que traduzam a urgência de trazer homens e mulheres, famílias inteiras, de volta aos territórios rurais. 
 
Precisamos de uma língua que dê conta de uma relação justa e digna com a terra, que reconheça quem produz alimento, que valorize o cuidado do território e que ajude a construir soberania alimentar e resiliência na produção de alimentos num tempo de incerteza. A língua, tal como a agricultura, tem de voltar a ser lugar de futuro.

Deixo uma questão para si, dedicada horteloa. O que planeia plantar nos próximos dias? Cá em casa, a horteloa de serviço plantou morangueiros 'Mara des Bois', aguardamos em breve frutos perfumados e deliciosos. Meloa, só lá para meados de março. 
 

 

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