Pequeno manual do ovo

Durante alguns anos mantive um galinheiro, com galinhas poedeiras. Um pequeno privilégio do agricultor, poder ter ovos caseiros, oferecidos por galinhas que correm à solta, com uma alimentação rica, diversa e escolhida com tempo. 

Poucas coisas me trazem tanta paz como passar longos períodos a observar galinhas. Aprecio a forma atarefada como procuram alimento, a relação complexa e teatral com os galos, a sua ruidoda diligência em agradar a todas elas, o forte sentido maternal e protetor que revelam quando há pintainhos. Tudo ali obedece a um equilíbrio discreto, suficiente em si mesmo e indiferente à urgência que nos governa.

As galinhas são seres extraordinários, frequentemente menosprezados por se achar que não são muito inteligentes. Quem as observa com atenção sabe que isso não é verdade. Cada galinha tem personalidade, manias, preferências e hierarquias bem definidas, que se revelam com clareza a quem se dá ao trabalho de as observar mais do que cinco minutos.

A quadra natalícia é uma das épocas do ano em que mais ovos se consomem. Estão à mesa das entradas às sobremesas, discretos, mas indispensáveis, a ligar receitas, sabores e memórias. Pareceu-me uma boa altura para dissertar sobre o ovo, essa joia preciosa que lhes sai pela cloaca, com uma regularidade quase milagrosa.

E já agora, tentar esclarecer um velho dilema da humanidade. Quem apareceu primeiro, a galinha ou o ovo? Terá sido o ovo a chegar primeiro. A estratégia de pôr ovos é muito mais antiga do que a galinha e a primeira de todas as galinhas teria de surgir a partir de um ovo. Esta é a minha hipótese favorita.

Que seria das nossas vidas sem ovos? Provavelmente mais complicadas, menos saborosas e, convenhamos, muito menos interessantes.

O ovo de galinha é um dos alimentos mais universais da dieta humana e, paradoxalmente, um dos mais mal compreendidos na cozinha doméstica. Pequeno e aparentemente simples, é na verdade uma estrutura biológica complexa, concebida para proteger e nutrir um embrião em desenvolvimento.

Essa função original explica muitas das suas características e ajuda a perceber porque certas práticas domésticas, embora bem-intencionadas, podem aumentar riscos em vez de os reduzir.

A casca do ovo é composta maioritariamente por carbonato de cálcio e atravessada por milhares de poros microscópicos que permitem trocas gasosas. Não é uma parede estanque, mas uma fronteira funcional entre o interior e o exterior. À superfície existe a cutícula, uma película fina e invisível, rica em proteínas e lípidos, que reduz a adesão e a penetração de microrganismos e limita a perda de humidade.

Esta cutícula é uma das principais defesas naturais do ovo. É precisamente por essa razão que, na União Europeia, os ovos destinados ao consumidor final não são lavados antes da comercialização. A lavagem remove ou fragiliza essa proteção e cria condições favoráveis à entrada de bactérias através dos poros da casca, sobretudo quando existe humidade associada a variações de temperatura.

A conservação do ovo em casa deve respeitar a lógica da sua biologia. O fator mais importante não é apenas a temperatura, mas a sua estabilidade. Variações frequentes provocam condensação de água na superfície da casca.

Essa humidade favorece a multiplicação de microrganismos à superfície e aumenta a probabilidade de penetração através dos poros. Por isso, se forem guardados no frigorífico, devem aí permanecer até ao momento da utilização. 
 
A porta do frigorífico, onde a temperatura varia com frequência, não é o local mais adequado. A embalagem original ajuda a proteger os ovos de humidade e odores. As mesmas recomendações aplicam-se a ovos de supermercado e a ovos de capoeira.
 
Não é recomendado lavar os ovos antes de os guardar. No caso dos ovos do supermercado, classificados como ovos de classe A, a presença de fezes ou sujidade visível deve ser encarada como motivo para rejeição ou devolução. Esses ovos não deveriam ter chegado ao consumidor.

No caso dos ovos de capoeira, a abordagem correta começa na triagem à recolha. Ovos rachados ou com fezes húmidas devem ser descartados. Ovos com sujidade ligeira podem ser limpos a seco, com papel ou pano. A lavagem só é aceitável imediatamente antes da utilização, com água potável, seguida de secagem imediata e de cozedura completa. Nunca deve ser feita antes do armazenamento.

Quando surge a dúvida sobre se um ovo ainda está bom, é essencial distinguir frescura de segurança. O teste do copo de água baseia-se num fenómeno físico simples. À medida que o ovo envelhece, perde água e dióxido de carbono através da casca e a câmara de ar interna aumenta.

Um ovo fresco colocado num copo de água afunda e fica deitado. Um ovo com mais tempo de armazenamento afunda, mas inclina-se. Um ovo muito velho tende a flutuar. Este teste permite avaliar a idade relativa do ovo e a sua qualidade tecnológica, mas não garante segurança microbiológica.

O método mais fiável em casa é abrir sempre o ovo para um recipiente separado antes de o juntar à preparação. Um odor desagradável intenso é um sinal claro de deterioração e justifica a rejeição imediata. Alterações visíveis marcadas no aspeto também devem levantar suspeitas.

Ainda assim, a ausência de cheiro não garante ausência de microrganismos patogénicos. Por isso, as autoridades de saúde portuguesas e europeias são consistentes numa recomendação fundamental. Cozinhar bem os ovos e evitar o consumo cru ou mal cozinhado, sobretudo em crianças, idosos, grávidas e pessoas imunodeprimidas.

A cor da casca é frequentemente interpretada como um indicador de qualidade, mas esta leitura não tem fundamento científico. A tonalidade da casca depende quase exclusivamente da genética da galinha. Algumas linhagens depositam protoporfirina durante a formação da casca e produzem ovos acastanhados.

Outras não depositam pigmentos e produzem ovos brancos. Existem ainda galinhas que depositam biliverdina, originando ovos azulados ou esverdeados. As diferenças observadas entre países, como a predominância de ovos brancos em certos mercados e de ovos acastanhados noutros, resultam de escolhas históricas de estirpes poedeiras e de preferências do consumidor, não de diferenças nutricionais ou sanitárias do ovo.

Um ovo branco e um ovo castanho, quando comparáveis em frescura e conservação, são biologicamente equivalentes. 

A gema conta uma história diferente. A sua cor depende principalmente da alimentação da galinha. O amarelo da gema resulta da presença de carotenoides, sobretudo luteína e zeaxantina, compostos que a galinha não sintetiza, obtém exclusivamente da sua dieta. Dietas baseadas em cereais pobres em carotenoides, como trigo ou cevada, tendem a originar gemas mais claras.

Pelo contrário, dietas em que o milho é o cereal dominante conduzem a gemas mais intensas, devido ao elevado teor natural de xantofilas. A ingestão em pastoreio de plantas herbáceas espontâneas contribui igualmente para intensificar a cor da gema.

Em sistemas ao ar livre, a estação do ano tem influência direta. Na primavera e no início do verão, quando há maior disponibilidade de vegetação rica em carotenoides, as gemas tendem a ser mais vivas. 

No inverno, mesmo com acesso ao exterior, a menor disponibilidade de vegetação disponível no pastoreio e a maior dependência de rações secas resultam frequentemente em gemas mais claras. 

Uma gema de cor mais intensa indica maior teor de carotenoides, mas não permite concluir automaticamente que o ovo é mais seguro, mais nutritivo em todos os parâmetros ou que a galinha viveu em melhores condições.

O calibre do ovo é igualmente condicionado por fatores biológicos e ambientais, sendo a idade da galinha o fator mais importante. Galinhas jovens, no início da postura, produzem ovos de menor calibre. 

À medida que envelhecem, o tamanho do ovo aumenta progressivamente. A alimentação tem também um papel relevante. Dietas equilibradas em energia, proteína e minerais favorecem a produção de ovos de maior calibre, enquanto défices nutricionais podem resultar em ovos mais pequenos.

O estado de saúde, o nível de stress e as condições ambientais influenciam igualmente o calibre. Temperaturas elevadas e stress térmico estão associados a uma redução do tamanho do ovo. 

Os ovos com duas gemas resultam de uma ovulação dupla, isto é, da libertação quase simultânea de dois óvulos que acabam encapsulados na mesma casca. Este fenómeno ocorre com maior frequência em galinhas jovens, cujo sistema reprodutor ainda não está totalmente estabilizado, e também em galinhas no final do ciclo produtivo. Não é um sinal de defeito sanitário nem de maior valor nutricional, mas uma variação fisiológica. 

Um dos grandes prazeres da minha querida mãe, hoje avó de quatro netos, sempre foi procurar ovos de duas gemas junto das suas fornecedoras de confiança. Havia nisso um cuidado atento, delicado, quase cerimonial.

Ainda hoje, no imaginário de cada uma das crianças, um ovo de duas gemas não é apenas um acaso da natureza, mas o gesto máximo de atenção da avó à mesa, uma prova simples e incontestável de que alguém pensou nelas antes de o dia começar.

Estes ovos tendem a apresentar calibres elevados e, por essa razão, não se enquadram facilmente nos critérios de classificação comercial padronizada na União Europeia, surgindo com maior frequência em produções domésticas.

No essencial, o ovo recorda-nos que compreender a natureza é mais eficaz do que tentar corrigi-la. Não se trata de o tornar artificialmente mais limpo do que ele já é, mas de compreender como funciona e agir em conformidade. 

Observar a casca, evitar desnecessária lavagem, manter estabilidade térmica, cozinhar com atenção. Entre a galinha e o prato existe uma cadeia de pequenas decisões. Quando são informadas e coerentes, o ovo continua a cumprir aquilo que sempre fez. Alimentar com simplicidade, segurança e discrição.

Se pretende criar galinhas em casa saiba que já não se usa meter o dedo no cu da galinha para saber se tem ovo, por muito que a memória rural insista em contar essa história com ar de ciência ancestral e convicção absoluta.

Houve um tempo em que o saber circulava sem manuais nem protocolos, transmitido de boca em boca, e em que a intimidade com os animais confundia facilmente observação com intromissão. O gesto existiu, não por virtude, mas por falta de escolha, num tempo em que o bom senso ainda não tinha frequentado a escola do bem-estar animal.

A galinha, convém dizê-lo com delicadeza, mas sem rodeios, não precisa de dedos curiosos na cloaca para cumprir o seu calendário biológico. O ovo forma-se no interior do oviduto segundo um ritmo próprio e previsível, e só muito perto da postura alguém poderia, em teoria, adivinhar alguma coisa ao apalpar a parte de trás da ave. 

Mesmo assim, o risco de stress, desconforto ou asneira era largamente superior à utilidade da manobra. O ovo não se descobre à força. Descobre-se com tempo.

A galinha prestes a pôr ovo muda de comportamento, procura o ninho, afasta-se do grupo e instala-se numa espécie de solenidade concentrada que não engana quem tenha aprendido a observar. O resto é ansiedade humana, essa velha tentação de querer confirmar com o dedo aquilo que o tempo resolve sozinho. 

Se pretende criar galinhas em casa, descanse. Não é preciso invadir a intimidade da ave nem recorrer a técnicas herdadas de um passado pouco higiénico e ainda menos elegante. As galinhas continuam a pôr ovos sem consultar ninguém, e agradecem que as deixem em paz.

Quanto à velha questão de saber quem veio primeiro, a galinha ou o ovo, deixemos a resposta onde ela sempre esteve. Dentro do ovo. Tudo o resto é conversa para depois da sobremesa.
 

 

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