Quando o verde se torna visível

Stefano Mancuso afirma que existe no nosso cérebro um tipo de preconceito cognitivo, a que chama cegueira vegetal, que nos incapacita de perceber verdadeiramente o verde que nos envolve.

Descreve essa condição como um velho obscurecimento da alma humana, uma névoa antiga que se instalou no nosso pensamento desde os primórdios e que nos afastou da presença silenciosa das plantas. Segundo ele, carregamos dentro de nós um preconceito quase mineral, tão profundo quanto invisível, que nos impede de ver o mundo vegetal na sua plenitude. 

Olhamos para elas sem as ver, porque o nosso cérebro habituou-se a reconhecer apenas aquilo que se move ao nosso compasso, que respira no mesmo fôlego, que partilha o mesmo instinto urgente de sobreviver. As plantas, com o seu tempo profundo e a sua arquitetura paciente, tornaram-se para nós um pano de fundo quase impercetível, um murmúrio que não sabemos decifrar. 

Segundo Mancuso somos incapazes de ver plantas porque somos incapazes de as compreender. Só reconhecemos verdadeiramente aquilo que se assemelha a nós e as plantas são, desde sempre, a forma de vida mais distante do nosso espelho. São quietas no movimento, lentas no gesto, vastas naquilo que não mostram.

Por isso a humanidade aprendeu a ignorá-las. E essa cegueira atravessou séculos, alimentando a ilusão de que vivemos num mundo governado por animais, quando na verdade caminhamos sobre um planeta inteiramente moldado pelas raízes.

Durante muitos anos acreditei que esta cegueira podia ser curada. E, sem me aperceber, acabei por dedicar a minha vida a essa cura. Desde muito cedo senti que havia em mim um chamamento silencioso, uma espécie de fio subterrâneo que atravessou décadas de trabalho, estudo e assombro, conduzindo-me sempre de volta às plantas. 

O meu primeiro consultório foram os jardins do Parque de Serralves, quando fui contratado para gerir a sua equipa de jardineiros. Nessa altura descobri que ensinar alguém a olhar para uma árvore é uma espécie de milagre íntimo. A natureza devolve sempre mais do que aquilo que lhe damos. Ali aconteceram alguns dos primeiros workshops de jardinagem em Portugal, numa época em que falar de plantas era quase um ato de resistência sensível.

Ao mesmo tempo escrevia, estudava, recolhia histórias de folhas e perfumes e sonhava, como tantos headgardeners ingleses, com o dia em que poderia transformar o amor pelas plantas num objeto vivo que chegaria às mãos de outras pessoas. Esse sonho tomou forma em 2007, quando publiquei um DVD que foi pioneiro no país.

Um curso interativo, feito com a vontade de reunir o conhecimento de anos de prática, as imagens, o tato, o cheiro, a intimidade das plantas aromáticas. Foram vendidos milhares de exemplares. Colegas agrónomos usaram-no nas aulas de norte a sul. Jardineiros amadores aprenderam ali os primeiros passos.
 
O que começou como um gesto íntimo abriu caminho para muitos outros. Hoje parte desse trabalho repousa serenamente no meu canal de YouTube, à espera de continuar útil a quem precisar.

Ensinar tornou-se então um rio contínuo. Doze anos consecutivos de aulas no Jardim Botânico da Ajuda, em Lisboa, abriram caminho a uma vida itinerante como guia botânico da Associação dos Amigos do Jardim Botânico da Ajuda. Durante anos viajei com grupos de portugueses até Inglaterra, como quem conduz peregrinos a templos de luz vegetal.

Visitávamos os grandes festivais de jardinagem, como o Chelsea Flower Show e o Hampton Court, e alguns dos jardins ingleses mais sublimes, onde cada planta parecia conter um universo próprio em estado de promessa. 

Havia sempre um momento em que alguém, surpreendido, descobria que uma folha que julgava banal revelava tonalidades e brilhos nunca vistos. Nesse instante de maravilhamento eu reconhecia o primeiro sinal de que a cegueira vegetal se rendia. 

Foram centenas de palestras em escolas e universidades, em Portugal e além-fronteiras, um programa de rádio na Antena 1 onde falava de plantas como quem acende candeeiros na madrugada, e uma rubrica de oito anos na RTP, onde todas as manhãs procurava oferecer ao país um breve clarão de verde interior.

Desde 2008 escrevo também num blogue que é, ao mesmo tempo, diário, estufa e caderno de campo. Tudo isto foi crescendo dentro de mim como uma floresta que nunca para de germinar.

Mais recentemente, tenho caminhado com grupos pelos jardins, guiando visitantes nas Derivas do Museu do Porto, à procura das árvores que a cidade esqueceu. Nestes passeios vejo a transformação acontecer diante dos meus olhos.

Há sempre alguém que, de repente, reconhece a velha forma de um carvalho, o perfume discreto de um loureiro, a sombra de uma tília que sempre esteve ali. E esse instante tem qualquer coisa de revelação.

Ao longo de todas estas décadas foram milhares as pessoas que vi despertar para a presença das plantas. Milhares que deixaram de ver apenas verde e começaram a distinguir texturas, geografias, biografias vegetais.

Milhares que aprenderam a sentir que cada planta é um mundo inteiro, não um adereço do cenário. Cada um desses olhares renascidos é para mim uma vitória da humanidade, uma respiração mais funda, uma rachadura luminosa na velha cegueira vegetal.

Talvez seja esta a minha forma de amar o próximo. Ajudar alguém a ver aquilo que sempre lá esteve. Ensinar que a Terra fala em silêncio e que basta inclinar o espírito para escutar. Há quem procure milagres em céus distantes. Eu encontro-os no instante em que alguém pronuncia o nome de uma árvore como se o dissesse pela primeira vez.

Como na letra da maravilhosa canção dos Primal Scream, Movin on Up
 
I was blind, now I can see 
You made a believer out of me 
 
(deixo a ligação para ouvir quando terminar de ler este post, vale muito a pena!).

É nessa faísca de entendimento, tão simples e tão profunda, que encontro o cerne da minha vida profissional. A minha missão foi, e continuará a ser, curar a cegueira vegetal. Uma cura feita de paciência, delicadeza e espanto. 

Uma cura que devolve ao mundo aquilo que lhe pertence por direito, a consciência do verde que nos sustém, nos alimenta, nos inspira e nos recorda que ver é, acima de tudo, um ato de amor. 

Penso muitas vezes no destino invisível destas sementes que fui lançando ao longo dos anos. Imagino o que terão germinado na quietude íntima de quem me leu, de quem me escutou. Porque não há maior maravilha do que saber que, em algum lugar, alguém começou a ver o mundo com um olhar novo. Não por minha causa apenas, mas porque caminhou ao lado de muitos que dedicaram a vida a desfazer esta antiga cegueira vegetal. 

Talvez seja esse o verdadeiro milagre. Não o meu deslumbramento diário perante o verde, que me salva sempre, mas o deslumbramento de quem aprende a ver depois de uma vida inteira a passar ao lado das plantas como quem passa ao lado da luz. E quando isso acontece, mesmo que eu nunca saiba o nome dessa pessoa, sinto que uma porta secreta se abriu no mundo. 

Porque cada olhar que desperta acrescenta um clarão ao planeta. Cada pessoa que aprende a ver uma árvore como um ser inteiro, uma folha como uma revelação, uma raiz como uma história, devolve dignidade ao lugar onde vive. É assim que o verde se expande. É assim que a Terra respira de novo.

E se, entre aqueles que me acompanharam ao longo do tempo, houver quem tenha descoberto esta nova nitidez, quem tenha aprendido a ver onde antes nada via, então tudo valeu a pena. Porque um só olhar iluminado tem o poder de transformar para sempre a paisagem interior que carrega.

Talvez o futuro comece assim. Por um despertar. Por um gesto. Por um instante. Por alguém que, de repente, encontra no mundo vegetal a clareza que sempre lhe faltou.

E nesse instante, breve, mas infinito, o mundo torna-se aquilo que sempre foi. Vivo. Luminoso. Irrepetível. E, no âmago de tudo, verdadeiramente humano.
 

 

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