A última Lista Vermelha

Em 1997, a humanidade ainda acreditava que podia salvar-se. Nesse ano, a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) publicou um livro que, em vez de consolo, trouxe um espelho.

Chamaram-lhe 1997 IUCN Red List of Threatened Plants. Um volume pesado, silencioso, de papel áspero e consciência fria. Trinta e três mil espécies vasculares raras ou ameaçadas. Um retrato do planeta à beira do abismo, com letras a preto e números que pareciam chorar.

Por coincidência ou ironia do destino, foi nesse ano que arranquei formalmente com a minha carreira profissional. Encomendei um exemplar, que ainda hoje faz parte da minha biblioteca. É um dos livros mais aterradores da história da humanidade. Desde 1997 que me recorda e assombra, estamos no abismo da sexta extinção em massa.

A IUCN descreveu-o como a compilação mais abrangente de dados sobre plantas ameaçadas jamais publicada. Até hoje, vinte e oito anos depois, este livro nunca mais foi publicado.

Desde então, a atualização da lista passou a habitar o espaço digital, numa base de dados que se expande e corrige a cada nova avaliação, sem a solenidade do papel, sem o peso físico do remorso.

Em 1997, a tabela do World Conservation Monitoring Centre atribuía a Portugal 5 050 espécies vasculares inventariadas, o universo conhecido e reconhecido nesse exercício global. Destas, 269 estavam em risco. Era uma estatística árida, talvez imperfeita, mas profundamente simbólica: 5,3 % da flora nacional em perigo de desaparecer.

Nessa altura, poucos imaginariam que o número cresceria, não apenas em contagem, mas em gravidade. Entre 2016 e 2020, Portugal empreendeu a sua própria travessia.

A Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental veio pôr nomes e rostos às sombras. Das 630 espécies avaliadas, 381 encontram-se ameaçadas: 169 vulneráveis, 128 em perigo e 84 criticamente em perigo.

Dezanove já não vivem entre nós. Duas estão extintas, dezassete regionalmente extintas, e com elas desapareceram histórias, aromas, geografias inteiras.

Em 1997, o conhecimento sobre a flora era fragmentário, construído a partir de listas dispersas, observações locais, herbários incompletos e uma base de dados mundial ainda em formação.

Muitas estimativas resultavam de compilações bibliográficas e de suposições de especialistas, num tempo em que a investigação botânica carecia de meios e de coordenação internacional. Desde então, a ciência deu um salto. A taxonomia foi revista, espécies sinonimizadas, novas populações descobertas e outras confirmadas por análise genética.

A tecnologia permitiu cartografar habitats com precisão e modelar cenários de perda ou recuperação. O esforço coletivo de botânicos, ecólogos e cidadãos criou um retrato muito mais fiel da realidade biológica do país e do planeta.

A diferença entre 1997 e 2020 não é apenas técnica. É também moral.

O que antes eram estimativas difusas são agora diagnósticos precisos, fundamentados em dados de campo, herbários, análises de ADN, modelação climática e observação sistemática. Hoje sabemos com rigor o que estamos a perder, e é essa consciência que pesa mais do que qualquer número.

Não há espaço para dúvida. As extinções multiplicam-se. A taxa global de desaparecimento de espécies é mil vezes superior à taxa natural de especiação. Estamos a viver a sexta extinção em massa, e desta vez o meteoro tem mãos humanas.

As plantas não gritam, mas silenciosamente colapsam. São elas que nos dão oxigénio, alimento, abrigo, beleza, sentido. Quando uma planta desaparece, a paisagem perde a sua gramática. As dunas ficam mudas, os rios esquecem o nome das margens, o solo esquece o sabor da chuva.

E no entanto, quase nada disto chega à superfície da opinião pública. Fala-se de economia, de crescimento, de energia. Raramente se fala da perda irreversível da vida que nos sustenta.

Se acompanha a minha página terá lido alguns dos textos que dedico às plantas da flora portuguesa que se encontram ameaçadas. Escolho, muitas vezes, as espécies mais próximas do olhar comum, aquelas que até quem pouco liga à botânica reconhece instintivamente, porque se parecem com as que habitam parques e jardins, pontes entre o natural e o doméstico, entre a memória e o que ainda pode ser salvo.

Os textos são uma gota numa galáxia, uma tentativa de criar empatia, de alertar, de informar, de apelar à ação. Também refletem parte do trabalho que tenho desenvolvido nos últimos dois anos, junto de empresas e instituições, em projetos de restauro ecológico.

E aqui fica a dúvida que lanço à plateia, aos que têm filhos, aos que esperam tê-los, aos que apenas amam a vida. Como lhes explicaremos, um dia, que sabíamos tudo isto e, ainda assim, não mudámos a tempo?

Como diremos aos nossos filhos que as florestas morreram em silêncio enquanto nós discutíamos abstrações? Como justificar a eles que assistimos à sexta extinção em massa com a indiferença de quem muda de canal?

Quando o meu filho Francisco, hoje com sete anos, crescer, quero poder dizer-lhe, e aos seus amigos, que fiz tudo o que estava ao meu alcance para ajudar a inverter esta gravíssima marcha do desaparecimento da vida.

Não basta informar. É preciso comover. É preciso restabelecer laços com o que ainda resiste: as orquídeas escondidas nas clareiras, as mentas bravas nas margens dos ribeiros, os zimbros que sobrevivem às neves, as urzes que voltam a florir nas terras queimadas. Cada espécie é uma hipótese de redenção.

Ainda é possível reverter o rumo, mas exige ação. Restaurar ecossistemas, proteger habitats, devolver função ecológica às paisagens degradadas. Incluir a biodiversidade nas políticas, na economia, nos currículos escolares, nos gestos do quotidiano. Plantar o que é nosso, cuidar do que é frágil, compreender o que é belo porque é finito.

A história das plantas ameaçadas não é apenas um inventário botânico. É o retrato da humanidade a medir a sua própria perda.

Talvez um dia, quando a humanidade compreender que a verdadeira riqueza não se mede em extrações mas em equilíbrios, deixaremos de contabilizar o lucro apenas em cifrões e passaremos a incluir no balanço o valor das florestas, da água limpa, do ar respirável, da beleza que sustenta o espírito.

Nesse tempo vindouro, o capital natural será reconhecido como o mais precioso dos patrimónios, e a economia deixará de ser o espelho da escassez para se tornar o instrumento da regeneração.

Será então o início de uma nova fórmula de criação de riqueza, onde empreender significará restaurar, e crescer significará curar. A humanidade subirá vários patamares de consciência, não por iluminação súbita, mas por necessidade e lucidez.

E nessa ascensão lenta e inevitável, talvez encontre a sua redenção, não nas torres de vidro, mas nas raízes que reencontrar com humildade.

Quando esse dia chegar, as listas vermelhas serão apenas vestígios de um tempo em que a humanidade quase se perdeu de si própria, e bastará abrir a janela para ver o verde a devolver-nos, com serenidade, o futuro que ousámos reconstruir.

O próximo texto será sobre a hortelã-brava (Mentha longifolia), uma sobrevivente silenciosa em Trás-os-Montes, confinada a um único núcleo populacional com menos de duzentos e cinquenta indivíduos maduros. A Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental classifica-a como Em Perigo.

Enquanto escrevo tenho o Francisco ao meu lado, a ler sobre ecologia.
 

 

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