Entre a água e o esquecimento: a (triste) história da hortelã-brava
Há plantas que nascem para guardar a memória da água. A hortelã-brava, também chamada hortelã-silvestre ou mentrasto-silvestre (Mentha longifolia), é uma delas.
Cresce onde a terra se demora húmida e o ar se faz fresco, nas margens dos rios e das linhas de água que ainda sabem falar a língua do tempo. O seu perfume é ancestral, mistura de verde e sombra, de vento que corre sobre a pele e lembra o frescor das manhãs antigas.
Cresce onde a terra se demora húmida e o ar se faz fresco, nas margens dos rios e das linhas de água que ainda sabem falar a língua do tempo. O seu perfume é ancestral, mistura de verde e sombra, de vento que corre sobre a pele e lembra o frescor das manhãs antigas.
A sua ecologia é de água e luz filtrada, de prados que se alagam, de valas e lameiros onde a lâmina de água se move devagar e o silêncio tem brilho de nascente.
Pertence à grande família das Lamiáceas, que fez das ervas aromáticas um idioma comum entre povos e estações.
Pertence à grande família das Lamiáceas, que fez das ervas aromáticas um idioma comum entre povos e estações.
Em Portugal o seu território encolheu até à fragilidade extrema. Hoje, a hortelã-brava é uma sobrevivente silenciosa em Trás-os-Montes, confinada a um único núcleo populacional com menos de duzentos e cinquenta indivíduos maduros.
A Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental classifica-a como Em Perigo.
Vive numa dobra de terra fresca, cercada de silêncio e risco. Ninguém a vê, poucos a conhecem. Perdê-la seria apagar um aroma que atravessou séculos de memória rural e de curas humildes.
De todas as espécies ameaçadas no nosso país, poucas guardam um paradoxo tão grande como esta. Quase ninguém esperaria encontrar uma hortelã entre as plantas em risco, pois a ideia comum é a de que todas crescem sem limites, com o ímpeto das plantas que parecem não conhecer fronteiras.
A hortelã-brava desmente esse lugar-comum. Vive ao ritmo do lençol freático, respira pela terra húmida, floresce quando o verão amadurece e recolhe-se de novo quando o frio regressa. É uma planta vivaz com longos rizomas subterrâneos, que lhe permitem adormecer no inverno e renascer com as águas da primavera.
O que nas outras hortelãs é força de expansão, nela é dependência delicada. Precisa da água que corre, da sombra que a abriga, do prado que se encharca e depois seca devagar. Não é planta que conquiste o território, é planta que o guarda, e por isso se tornou rara.
A mesma linhagem que fez das hortelãs um símbolo de vigor tornou esta uma sobrevivente discreta, fiel à frescura das ribeiras e vulnerável à ausência delas. É irónico e comovente pensar que entre tantas hortelãs que se espalham pelo mundo, é uma das nossas, a que escolheu as margens frias de Trás-os-Montes, que pede socorro em silêncio.
É uma espécie viajante. Segue o curso das águas desde a Península Ibérica até à Ásia Central, alcançando o norte e o leste de África e prolongando-se pela Eurásia temperada como quem persegue o rumor dos riachos. Introduzida em algumas ilhas atlânticas, encontrou nelas eco e morada, sem nunca perder o instinto das terras continentais.
Nos prados húmidos do Mediterrâneo e nas montanhas orientais da África do Sul, reconhece-se pela mesma fidelidade à humidade, pela mesma vontade de renascer depois da cheia. É uma cosmopolita de rios e margens, memória viva da água.
Em outros tempos foi planta de casa e de remédio. As folhas frescas, esmagadas entre os dedos, libertavam um perfume mentolado que aliviava dores de cabeça e serenava febres. As infusões reconfortavam o estômago e devolviam leveza à respiração.
Em muitas aldeias fazia parte dos rituais da água, usada em lavagens do corpo, em banhos purificadores ou como repelente natural de insetos. É planta que cura pelo aroma, antes mesmo de tocar a pele.
Sob o microscópio da química, revela a mesma engenhosidade das suas irmãs. Entre os seus compostos principais encontram-se mentona, piperitona e o seu óxido, pulegona, 1,8-cineol, timol e carvacrol, substâncias que lhe conferem aroma, defesa e reconhecida atividade biológica.
A composição do óleo essencial muda com o lugar e com o ano, num mosaico que faz da espécie uma viajante de perfumes.
Em algumas margens do Mediterrâneo predominam piperitenona e piperitona nos seus óxidos, por vezes acompanhadas de 1,8-cineol e de traços de pulegona, enquanto no Próximo Oriente e nas terras áridas da Ásia se repetem combinações de piperitona epóxido, 1,8-cineol e mentona.
Mais raramente desponta a assinatura de timol e carvacrol, joia química de poucos acessos. Em cada rio, um perfume diferente.
Essa variabilidade é o seu dom e a sua fragilidade. Cada quimiotipo é uma biblioteca genética única e, quando uma população se extingue, desaparece um conjunto irrepetível de combinações bioquímicas.
No seu caso, perder a espécie em Portugal seria apagar também um fragmento da diversidade química da flora europeia, uma nota singular na sinfonia invisível dos aromas da terra.
As ameaças são claras: alteração dos cursos de água, drenagem de zonas húmidas, poluição agrícola, abandono dos prados tradicionais, pastoreio excessivo e a sombra constante das alterações climáticas.
A redução da disponibilidade hídrica e a artificialização das margens tornam o seu habitat cada vez mais precário. A espécie resiste com dignidade, mas cada verão demasiado seco é uma aposta contra o tempo.
Conservá-la exige restaurar as margens e os prados húmidos, proteger o fluxo das ribeiras, controlar as invasoras que competem pelo mesmo espaço e recolher sementes ou estacas para programas ex situ em jardins botânicos e bancos de germoplasma.
Conservar a hortelã-brava é mais do que salvar uma planta rara. É preservar uma relação antiga entre o homem e a água, entre o aroma e a memória. É lembrar que o perfume que nos acalma nasceu num chão que se alaga e que pede cuidado.
Quando as ribeiras de Trás-os-Montes secarem por completo, o seu cheiro desaparecerá como um eco que se esvai. Talvez então compreendamos tarde que a hortelã-brava era um aviso, uma metáfora viva da nossa dependência da água e da nossa distração perante o que ainda respira junto dela.

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