A silenciosa lotaria das maçãs

Em cada caroço de maçã dorme uma história inteira que ainda não foi escrita. Sabemos hoje, com o rigor tranquilo da genética, que a macieira doméstica (Malus domestica) guarda um genoma espantoso, com cerca de 57.000 genes, mais do dobro dos que sustentam o corpo humano.

Quem sabe se não foi essa abundância secreta que levou a tradição a escolhê-la como fruto do pecado original, símbolo antigo de tudo o que desperta desejo e curiosidade? 

Uma maçã pode oferecer algumas dezenas de sementes, todas distintas entre si, cada uma capaz de germinar como uma árvore inédita, com outro perfume, outra textura, outra cor, outro sabor.

Num fruto tão comum esconde-se uma constelação de futuros improváveis. Qualquer uma dessas sementes pode transformar-se na próxima Fuji ou Granny Smith. Cada maçã é uma pequena lotaria biológica, um tesouro discreto pousado na palma da mão.

E essas sementes, múltiplas e singulares, carregam combinações únicas de genes, prontas a dar origem a árvores de carácter próprio, com sabores e cores que jamais se repetem. O que parece apenas um fruto banal revela-se, visto ao nível do ADN, uma nuvem vibrante de possibilidades. Cada caroço é, silenciosamente, uma promessa extraordinária. 

O projeto Some Interesting Apples, nas paisagens ventosas da Cornualha, leva esta ideia às últimas consequências poéticas e científicas. Desde 2019, William Arnold e James Fergusson têm procurado macieiras espontâneas nascidas de caroços descartados em sebes, bermas e terras marginais, e já localizaram mais de 600 destas árvores. 

Chamam-lhes wilding apples (macieiras-bravias) de origem doméstica que crescem em raiz própria, apenas porque um dia alguém acabou de comer uma maçã e lançou o resto ao chão. A partir destas árvores provam, escolhem, enxertam, fotografam, e levam garfos para um pomar-mãe criado com instituições locais, onde se experimentam novas combinações para um clima cada vez mais instável.

Fontes recentes descrevem este pomar como o primeiro, no Reino Unido, inteiramente dedicado a árvores nascidas de caroços atirados para as sebes e bermas, um campo experimental vivo onde dezenas de árvores enxertadas a partir de macieiras-bravias começam agora a ser observadas como possíveis cultivares rústicas do futuro.

Nas provas de sabor anuais em Kestle Barton, os frutos destas árvores são estudados como parte de um exercício contínuo de investigação, onde a diversidade de sabores e texturas serve de guia para compreender a resiliência e o potencial destas macieiras num clima errático. 

Em Portugal, a história da macieira é antiga e profundamente enraizada. A macieira doméstica está amplamente distribuída no território, cultivada desde há séculos em regiões como o Minho, Trás-os-Montes, Beira Interior e Oeste.

A macieira-brava europeia (Malus sylvestris) é autóctone no norte e centro do país, onde se encontra sobretudo em margens luminosas de bosques, sebes antigas e linhas de água, crescendo de forma discreta e resiliente. 

Esta espécie nativa enfrenta pressões significativas, desde a perda de habitat até à hibridação com macieiras cultivadas, o que exige um olhar cuidadoso sempre que se estuda ou se intervém sobre populações espontâneas para garantir a proteção das linhagens verdadeiramente silvestres.

O coração verde do Minho é um dos refúgios mais ricos desta diversidade. O trabalho de prospeção conduzido pela Escola Superior Agrária de Ponte de Lima revelou, já em 2015, mais de 60 variedades regionais preservadas por agricultores que mantiveram pomares antigos e árvores de família. Nos anos seguintes, este número ultrapassou 100. 

Estas variedades sobreviveram porque guardavam um sabor estimado, uma adaptação silenciosa ao solo húmido e às brumas da serra, uma tenacidade agrícola que o tempo não conseguiu apagar.

Muitas estavam prestes a desaparecer, vítimas da uniformização comercial que favoreceu poucas cultivares globais e empurrou para a sombra tudo o que era singular. Ainda assim, no Minho, estas árvores continuaram a resistir, testemunhas de uma memória agrícola que nunca deixou de pulsar.

Ao contrário da Cornualha, não existe entre nós um levantamento sistemático de macieiras espontâneas nascidas de semente, mas tudo o que a ciência portuguesa tem revelado aponta para um património genético vasto e vivo. O Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária descreve a riqueza das variedades regionais portuguesas e a urgência da sua preservação.

O Catálogo Nacional de Variedades reúne cultivares tradicionais como Bravo de Esmolfe, Porta-da-Loja, Casa Nova, Malápio de Gouveia, Pêro de Coura, Camoesa, Pêro Pipo, Verdeal e tantas outras. No Minho, a investigação prossegue com análises morfológicas e biomoleculares de acessos que ajudam a construir um retrato rigoroso do nosso património.

Estudos com marcadores moleculares, quer microssatélites quer ISSR, confirmam que as coleções portuguesas de macieira guardam uma diversidade genética elevada, com muitos alelos raros e arranjos próprios das cultivares autóctones. Em alguns casos, como na Bravo de Esmolfe, analisaram-se mais de 100 clones, revelando diversidade intravarietal que confirma a profundidade do nosso património. 

Uma síntese ibérica recente mostra ainda que o noroeste da Península, incluindo o Minho, constitui um dos reservatórios mais importantes da variabilidade europeia de Malus domestica.

Na Madeira, estudos universitários mostram que variedades insulares como Pêro Domingos, Maçã Barral, Maçã Cara de Dama ou Pêro Calhau guardam um carácter próprio moldado pela altitude, pela orografia e pela luz atlântica. Estas variedades foram caracterizadas morfofenologicamente e quimicamente, revelando perfis distintos com valor para conservação e uso local.

Os documentos da CCDRC confirmam que muitas destas variedades tradicionais revelam boa adaptação a sistemas de agricultura biológica e que a sua conservação em uso mantém viva a agrobiodiversidade local.

A especificação das Maçãs de Basto descreve com precisão o perfil físico-químico de variedades como Pipo de Basto e Verdeal, mostrando como o território imprime nos frutos uma identidade que não se repete noutro lugar.

Estudos bioquímicos recentes revelam ainda que variedades tradicionais portuguesas, como a Bravo de Esmolfe, os Malápios ou certos Pêros antigos, apresentam teores elevados de compostos fenólicos e atividade antioxidante significativa, afirmando cientificamente aquilo que o paladar popular sempre soube: estas maçãs guardam mais do que memória, guardam química viva.

Portugal tem condições científicas, culturais e ecológicas para desenvolver um projeto inspirado no Some Interesting Apples, desde que feito com rigor e respeito pela nossa realidade. A diversidade existe e está documentada.

As variedades regionais estão estudadas e conservadas em coleções vivas. A macieira-brava cresce ainda nas margens dos nossos vales. Vários estudos portugueses confirmam diferenças marcadas entre cultivares regionais ao nível morfológico, bioquímico e sensorial.

A única peça que ainda nos falta é a que torna o projeto inglês tão singular: a procura sistemática de macieiras nascidas de caroços lançados ao acaso. Não porque faltem árvores, mas porque ainda não caminhámos o país com esse olhar.

Assim, um projeto português inspirado em Some Interesting Apples seria não só possível como cientificamente justificado. Exigiria apenas que uníssemos o que já temos: estudos, coleções, variedades regionais, bancos de germoplasma, memória agrícola, com aquilo que ainda falta: caminhar, observar, provar e mapear as árvores que nasceram sozinhas, estas pequenas lotarias genéticas que esperam ser descobertas.

Cada semente pode esconder uma surpresa. Cada caroço é uma promessa de futuro. Tal como na Cornualha, cada caroço de maçã lançado num caminho português pode esconder a próxima surpresa, a próxima história, o próximo sabor que ainda não provámos.

Para encerrar este texto, deixo o convite para ver o pequeno filme realizado por Elena Heatherwick, criado em colaboração com William Arnold e James Fergusson, produzido pela Ffern e pela Pal Studios.

É um retrato breve, luminoso e certeiro do espírito do Some Interesting Apples. As árvores, germinadas de caroços esquecidos, a beleza imperfeita dos frutos inesperados, o espanto que renasce no gesto simples de provar algo que nunca existiu antes.

Em poucos minutos, revela com uma clareza espantosa aquilo que as palavras tentam alcançar, mas não conseguem reter por completo. Quem o vir até ao fim perceberá que este movimento não é sobre maçãs. É sobre olhar a paisagem com renovada atenção. É sobre regressar ao princípio, aquele que esquecemos que existia.


 

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