Nêsperas e magnórios

Em Portugal existe uma linha invisível que não se aprende em atlas algum. É uma fronteira feita de sotaques, onde o fruto que o Norte chama magnório se transforma, ao descer a estrada, na nêspera que o Sul conhece desde sempre. Uma mudança tão subtil que mais parece obra da luz do próprio caminho.

A nespereira (Eriobotrya japonica), que chegou ao país vinda de horizontes orientais, espalhou-se pelas cidades como quem encontra refúgio. Cresce em quintais antigos, em hortas urbanas onde o tempo trabalha devagar, em logradouros silenciosos onde o cimento deixa fendas suficientes para que a vida regresse. 

Adapta-se a solos pobres, suporta ventos salgados, não exige cuidados. Algumas nascem do gesto distraído de quem atira um caroço para o chão. Outras são obra de aves que pousam um instante e seguem viagem. Assim, com esta paciência vegetal, surgem árvores que enchem o ar de sombra e de fruto.

No Porto e em Vila Nova de Gaia a sua presença é quase clandestina. Acompanha os taludes do comboio, vigia pátios que ninguém visita, ergue-se por trás de muros que escondem mais histórias do que recordamos. Muitas são anónimas, sem data nem autor. Simplesmente acontecem.

Não as aprecio particularmente, até que por esta altura do ano me fazem lembrar porque são indispensáveis, muito para além dos seus apreciados frutos.

Entre outubro e fevereiro, de forma mais evidente em novembro, desdobram-se as pequenas flores brancas e, de súbito, o ar enche-se de um perfume que nos apanha desprevenidos. Não demora muito até que nos convide a virar a cabeça, para tentarmos perceber de onde vem. 

É um aroma doce e floral, com qualquer coisa de mel e citrinos, inebriante, extraordinário, queremos sempre mais. Quem caminha pelas ruas apercebe-se dele, mesmo sem nunca conseguir ver a árvore, há quem a procure sem nunca a encontrar.

Muitas vezes está escondida num quintal ou por detrás de uma parede. O perfume, porém, não conhece barreiras. Passa por entre pedras, atravessa escadas, dobra esquinas como se procurasse alguém especial.

E enquanto as flores se oferecem às abelhas, no interior dos ramos prepara-se a doçura da primavera. Os frutos amadurecem devagar durante o inverno e revelam-se apenas no início de abril ou maio, quando a estação ainda está a aprender a ser clara. 

Talvez seja essa generosidade precoce que fez da espécie companheira de tantos lugares do mundo. Na China, onde nasceu. No Japão, que a cultivou com devoção. Em países mediterrânicos e no Brasil, onde os frutos enchem mesas e dão origem a doces e licores.

Entre nós os nomes mudam de região para região, mas a árvore permanece a mesma. É esta diversidade de palavras que revela a intimidade antiga entre o território e a espécie que o habita.

Não deve, porém, ser confundida com a nespereira-europeia (Mespilus germanica), de folhas caducas e fruto castanho, uma presença mais rara nos nossos jardins. A sua fruta amadurece apenas quando o frio a vence e a polpa se entrega. É uma parente distante, quase esquecida, enquanto a nespereira vinda do Oriente se tornou parte silenciosa da nossa paisagem quotidiana.

Esta é a imagem de uma árvore discreta que desenha linhas invisíveis sobre o mapa do país. Entre magnórios e nêsperas, entre outonos perfumados e primaveras luminosas, a nespereira recorda-nos que uma espécie vinda de longe pode tornar-se casa. 
 



 

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